1 – Qual foi o processo criativo para chegar ao espetáculo “Simplesmente eu. Clarice Lispector”?Começou com o processo da pesquisa. Foram dois anos de muita leitura. Li muitos livros biográficos e sobre a obra da Clarice. Trabalhei muito com cadernos de literatura do Instituto Moreira Salles e assistia a vários depoimentos dela. Foi então que eu construí o corpo do texto, extraindo deste material: depoimentos, entrevistas, correspondências, opiniões da própria Clarice sobre a vida, sobre a escrita, sobre Deus, sobre o amor.
2 – Um dos pontos que mais chamam a atenção neste espetáculo, é que você fica muito parecida com Clarice Lispector, fisicamente. Como se deu esta construção?Muito pela maquiagem. É um trabalho de visagismo. São horas de preparação de cabelo e maquiagem. O interessante deste processo é que cheguei a fazer a maquiagem igualzinha a de Clarice, só que como faço outras personagens no espetáculo, não deu certo, porque ela não saia mais do meu rosto. Então resolvi trabalhar com a sugestão. Neutralizei minha sobrancelha e utilizei o traço do olho da Clarice, suavizando as diferenças e acentuando as semelhanças. Mas não é só o visagismo quem faz de mim Clarice, é a energia dela, é o tempo de andar, de falar, de usar as mãos. É um estado Clarice que faz você enxergar a própria Clarice.
3 – Foi demorada esta construção?Nestes dois anos de pesquisa, dediquei seis meses num trabalho com a Rose Gonçalves, que é uma preparadora vocal maravilhosa. Para eu poder me dirigir, ir para o espaço, para o corpo, precisava já ter um domínio da palavra, o suficiente para poder brincar com elas. E assim fui caminhando, dominando o texto, me aprofundando e trabalhando a tridimensionalidade da palavra. Trabalhei o sotaque da Clarice, que muita gente acha que é estrangeiro, o que na verdade é um sotaque nordestino (ela começa a falar com sotaque nordestino), só que como ela tinha a língua presa, parece uma outra língua (ela apresenta pela primeira vez, durante a entrevista – a voz de Clarice Lispector), então descobri a musicalidade. Eu ouvi as entrevistas dela no Museu da Imagem e do Som a última para a TV Cultura (o que aliás é só isso o que existia dela). Você junta um visagismo, uma luz, um figurino e a energia da pessoa – a pessoa está em cena conversando com você. E este é o meu objetivo – trazer a Clarice para conversar com o público.
4 – Foi Beth Goulart quem encontrou Clarice, ou foi Clarice quem encontrou Beth Goulart?Esta pergunta é muito interessante. E eu respondo: as duas coisas. Escolhi a Clarice como admiradora dela – desde a minha adolescência eu tenho Clarice, ela é instigante, singular, especial. O momento e a forma como se deu, eu digo que fui escolhida, porque este projeto na verdade não era para ser este, era para ser outro que não deu certo, não ia fazer um solo, teriam outras pessoas, era para ter outros autores...mas nesta altura não dava mais para eu abrir mão. Eu já estava grávida da Clarice e não podia negar o que estava acontecendo comigo. Meu envolvimento fez acontecer o Simplesmente eu. Clarice Lispector que também pode ser visto como Simplesmente eu. Beth Goulart
5 – Como foi dividir o palco com seu irmão Paulo Goulart Filho no espetáculo Quartett, de Heiner Müller?Foi maravilhoso. Ele é um excelente bailarino e ator. Meu primeiro companheiro nesta montagem era o Guilherme Leme, que tem comigo uma química e uma cumplicidade muito boa. Como ele teve que sair do espetáculo, fiquei numa sinuca, porque não podia ser qualquer ator para dividir a cena. Porque são dois personagens que se apaixonam, num envolvimento profundo num jogo de identidade. Isso foi muito interessante com o meu irmão.
6 – O que chama atenção no espetáculo Quartett era a semelhança de vocês dois......funcionava como um jogo de espelhos. Não mudamos nada, continuou a mesma marcação. Com o Guilherme Leme se estabelecia um jogo de poder, com o Paulinho, foi um jogo de amor, que era o que eu gostaria de ter feito desde o início. Até porque estas personagens só se destroem porque não aceitam o amor. Mas a beleza do espetáculo é enxergar a beleza por trás do poder. Enxergar o medo deles, que não tiveram a coragem de assumir este sentimento. Eles preferem o conhecido do poder ao desconhecido do amor, ao desconhecido da entrega.
7 – Cinema, teatro ou TV?Cada um no seu momento. Os três são importantes. Como criadora eu prefiro o teatro, mas como atriz eu gosto de todos. Mas sem dúvida nenhuma o contato humano é insubstituível.
8 – Onde podemos encontrar a Beth Goulart cantora?Em cena (Clarice Lispector). Uma das pesquisas de linguagem que eu tenho feito nos últimos tempos, sempre tem um trabalho de corpo e de voz. Isso faz parte da minha característica profissional. Não nego, eu assumo. A música é muito importante para o trabalho, e em “Simplesmente eu..." num determinado momento, gostaria de ter uma canção judaica, um canto (ela considera a linguagem dos deuses). Pesquisei muito e não consegui encontrar. Depois de um tempo, encontrei um cd de salmos cantados, mas também não era o que eu desejava, pois eu queria uma súplica, que viesse do coração, e como minha necessidade era tanta, acabei compondo a música (é uma das cenas mais lindas do espetáculo)
9 – Como vê o panorama do teatro brasileiro?Interessante. Temos mais grupos de trabalho de pesquisa, no eixo Rio-São Paulo, onde eu convivo mais. A Cia do Atores é um grupo que viaja o mundo inteiro com própria linguagem, assim como grupos que já possuem uma trajetória, como o Antunes Filho. No Rio de Janeiro já se vê um movimento de novos dramaturgos. O teatro hoje já tem uma cara, ou melhor, várias caras. Mas continuo achando que o teatro é uma arte de resistência. Falta ainda uma política cultural que abranja estas atividades, que dêem um subsídio para todos estes grupos funcionarem e para outros grupos se reerguerem. É necessário o exercício de formação de plateia, de hábito cultural que ainda precisa ser alimentada no brasileiro. O hábito de ir ao teatro. Muitos só vão assistir comédia para não precisar pensar. Teatro é uma atividade do pensar. O público tem que parar de ter medo de pensar. Pensar é bom, faz bem. Se você não pensa muito enferruja. Tem que trabalhar o corpo e a mente, e isso, o teatro, a mãe de todas as artes tem todas as manifestações artísticas. Falta ao público o prazer de co-criar o espetáculo. O público não tem que ficar só passivo. Ele tem que por a sua contribuição, complementar, fazer seu pensamento crítico, seu exercício de raciocínio, para tirar suas conclusões. Por exemplo: quando fazíamos Quatett, as pessoas ficavam chocadas, até porque o Heiner Müller tem um teatro = terrorismo cultural. Ninguém sai igual de uma peça dele. Por isso as pessoas não têm que ver o que pensar, elas têm que pensar no que vêem. Você tem que ver uma coisa que te provoque - o pensamento, a reflexão. Sou contra e a favor, acho que é isso, acho que não é...é sair do conforto, deixar de ser passivo. E esta é a função do teatro. Tem que ser um prazer para quem faz e deve ser um prazer para quem assiste. Então, muita gente está acordada, mas há muita gente dormindo também.
10 – Quais são os teus próximos projetos?Agora vou me dedicar a este projeto (Clarice), ele está me dando muita alegria, ele tem uma vida longa. Têm surgido alguns convites pelo Brasil e para fora do país. Mas junto a isso, eu estou num processo de pesquisa de falar de outras mulheres importantes, que quero dar o meu olhar. O teatro e o cinema têm um compromisso com a história. O Brasil não conhece muito a história do Brasil. Existem mulheres que transformaram a nossa história e que devem ser relembradas, por meio de um olhar poético, lírico, artístico, mas também analítico, crítico, sobre o que cada uma delas fez.
PING – PONGComida – o cozido da minha mãe (a também atriz Nicete Bruno)
Filme – Cidadão Kane
Personagem – Joana D’Arc
Um lugar no Mundo – Paris
Personalidade Brasileira – Fernanda Montenegro
Espetáculo teatral – Os Sete Afluentes do Rio Ota - inspirado na obra-prima de Robert Lepage
Um beijo, um abraço e um aperto de mão – Para José Sarney (risos). Vai para casa Sarney
Uma frase – “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda” - Jung
Uma música – Beth não lembrava o nome então...ela cantou “...eu sem você, não sei além porque, porque sem você, não sei nem chorar...
“O propósito do teatro é fazer o gesto recuperar o seu sentido, a palavra, o seu tom insubstituível, permitir que o silêncio, como na boa música, seja também ouvido, e que o cenário não se limite ao decorativo e nem mesmo à moldura apenas – mas que todos esses elementos, aproximados de sua pureza teatral específica, formem a estrutura de um drama” – Clarice Lispector