sábado, 29 de janeiro de 2011

Exit Through the Gift Shop e a arte de rua

 
Não conhecia muita coisa de street art antes de assistir Exit Through the Gift Shop, documentário dirigido por um dos mais controversos e enigmáticos expoentes deste movimento urbano, o famigerado Banksy. Também não conhecia Banksy, é bom que se diga. Ele é considerado um gênio deste tipo de expressão artística, que tem no grafite seu maior representante, mas não o único, uma vez que artistas colam imagens em paredes, fazem esculturas e as inserem em paisagens urbanas, marcam locais com elementos icônicos, etc. Enfim, é uma forma poderosa de expressão, nascida nas grandes cidades, que visa tirar um pouco da uniformidade de paisagens cada vez mais estéreis. Por favor, não confundir street art com pixação, já que a única coisa que ambas possuem em comum é o caráter ilegal, mas de resto, são tão díspares como a Monalisa e os adesivos de família colados em carros, tão em voga.

Pois bem, Exit Through the Gift Shop me mostrou um mundo novo, sem exageros, pela possibilidade desta arte urbana que, pelo menos no material documentado, tem muito a dizer. Afinal de contas, pode ser até traduzida como ato político, por exemplo, a série de desenhos feitos por Banksy no muro que divide Israel e a região palestina da Cisjordânia. Fiquei meio desconcertado com algumas obras, com a criatividade e a paixão com as quais os artistas desafiam leis, convenções e imprimem sua marca, geralmente contestadora, no cotidiano nas pessoas. Parecem-me atos de expressão artística genuína, pelo impacto ético e estético.

Fosse por mostrar de maneira tão impactante e interessante o mundo da street art, Exit Through the Gift Shop já poderia ser classificado como ótimo, mas ele é mais. O filme é dirigido por Banksy, este homem que se tornou notório, e que quase ninguém conhece, que vive nas sombras de um nome. Mas o documentário não é sobre street art, nem sobre ele mesmo, e sim sobre Thierry Gueta, um francês que documentava tudo com sua câmera de vídeo e que, apaixonado pela adrenalina e pelo trabalho dos grafiteiros e artistas de rua, fez do acompanhamento destes, sua rotina. Ao tomar conhecimento do trabalho de Banksy, Thierry fica obcecado por conhecê-lo e mostrá-lo em ação, e quando tem a oportunidade, age como um fanático em busca de uma divindade.

Exit Through the Gift Shop, então, é dirigido por um artista, e fala sobre como alguém queria muito documentá-lo? Não, não é bem isso. Como em outros casos, muito se fala sobre a verdade do filme, sobre se ele seria um documentário mesmo ou mais uma das obras de arte controversas de Banksy, puramente ficcional. Controverso o filme é, de qualquer maneira, mas ficção? Documentário? Gueta é mesmo verdade ou um veículo para Banksy discutir a real natureza da arte? Dirão alguns: “sim, mas Gueta tem trabalhos, exposições, fez o design de capas de CD’s de divas da música pop, então ele é real”. Será mesmo? Enfim, discussões desta natureza à parte, que por si só dariam um post, o importante é que de um documentário expositivo sobre a bastante interessante street art, Exit Through the Gift Shop se torna uma discussão muito forte, importante e atual sobre os limites da arte, sobre o que pode ser considerado artístico, e o que é pura pretensão gráfica. Cineastas que filmam sem parar, sem saber o que fazer depois, artistas que copiam adoidado, que são fãs de mídia e ficam ricos à custa da “contestação” conformada com o pensamento opressor dominante, são verdadeiros artistas ou meros corruptores de algo belo que poderia realmente mudar a vida das pessoas? Perguntas pertinentes levantadas por este belíssimo filme.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Inverno da Alma e a outra paisagem americana


Faz bem para a cinematografia estadunidense quando aparece um filme como Inverno da Alma. Quando digo “aparecer” me refiro à exposição que a recém indicação ao Oscar de Melhor Filme oportunizará ao filme. Mesmo que suas chances de vitória sejam mínimas, o primeiro longa-metragem da diretora Debra Granik certamente se beneficiará do fato de estar na lista, pois ganhará mercado e mais gente interessada. Falei que Inverno da Alma é benéfico, pois apresenta um EUA diferente daquele a que estamos acostumados, seja o dos subúrbios assépticos de produções mais rasteiras, das grandes e esmagadoras metrópoles, ou mesmo da degradação atenuada de muitos filmes que se pretendem ser o que não são, ou não tem a coragem para arriscar. Esta diversificação é boa, pois desnuda outros lados da terra do Tio Sam, este império odiado pelos subjugados, mas que em matéria de cinema, tem muito a dizer.

Inverno da Alma é sobre a busca de uma menina por seu pai. A bela e arredia Ree Dolly, do alto de seus 17 anos, cria seus dois irmãos menores e ainda cuida de uma mãe catatônica, ao passo que precisa localizar o pai que empenhou a casa e a madeira da família por conta de sua fiança. Ree vive num cenário desolador no meio-oeste americano esta busca pelo pai foragido da justiça. O entorno parece mais em conformidade como um estado de putrefação natural, e as casas e paisagens desenham, junto com as figuras que as habitam, um conjunto de tristeza e esquecimento. Ree vai atrás de informações acerca do pai, mas a vizinhança não gosta de perguntas, não tolera dedos-duros e gente que se relaciona com a polícia. Além do cenário decadente, a cercania está envolvida com atividades ilícitas, principalmente o processamento e venda de drogas. Ree é atrevida e paga o preço da jornada, ajudada por seu tio, outro desajustado social.

Este Inverno da Alma é um filme miúra, sem muito marketing por trás ou algo que o valha, mas, repito, deve ser o maior beneficiado com a indicação aos prêmios da academia. Sem dúvida é um filme a ser descoberto, principalmente para que as ótimas interpretações da jovem Jennifer Lawrence e do subestimado John Hawkes, em mais uma performance de bastante destaque, sejam conferidas. A diretora Debra Ganik também tem muitos méritos pelo êxito do filme, já que consegue a construção de uma atmosfera opressora, permeada pelo desespero da menina Ree, sem nunca permitir que a linha tênue que separa o sentimentalismo barato da emoção genuína se rompa, preservando sua narrativa do primeiro. Pode não ser o grande filme do ano, mas tem cenas fortes, ritmo adequado, uma história de fato muito bem contada e interpretada, e ainda demonstra uma pulsão criativa vinda dos pequenos diretores e das equipes reduzidas que, hoje, nos EUA, fazem a diferença pelo simples fato de terem o que falar.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Catfish e os peixes presos na rede


Os antropólogos, sociólogos e outros “ólogos” de plantão podem dar mais significância às questões internéticas, principalmente no que concerne a forma como as redes sociais criam interação virtual, que muito difere da real. Isto não impede que tenhamos um olhar crítico e até mesmo analítico acerca destes fenômenos que, ao passo que conectam milhões, que se apresentam como vias absolutas de comunicação, causam certa solidão e isolamento em alguns, que não se importam (ou não se dão conta) em se transformar em dicotomias ambulantes: introvertidos e não raro descontentes com a vida real, mas possuidores de avatares cibernéticos de existência exemplar, donos de um sucesso artificial que se presta a preencher lacunas da realidade dos componentes desta sociedade cada vez mais afeita à competição e a exaltação dos “melhores”, em detrimento dos “perdedores”.

Catfish, sucesso americano independente, fervilhante assunto nos fóruns da internet, é alardeado como um documentário sobre o peculiar relacionamento à distância entre um fotógrafo de Nova York e uma menina de oito anos que transforma suas fotos em pintura. Posteriormente, Nev, o fotógrafo, expande a amizade para toda família da menina: a mãe, o pai, o irmão roqueiro e a irmã, linda, que acaba começando um flerte com ele. O documentário então muda o foco, e vemos Ned em suas correspondências apaixonadas com Megan, até que um dia, numa destas trocas, devidamente registradas em filme, algo acontece e, a partir dali, o documentário passa a ser quase um thriller, um suspense que nos convida a descobrir. Muito mais não se pode falar de Catfish, opto deliberadamente por ser evasivo, pois parte da graça encontra-se na surpresa, no desenrolar de uma trama que vai lentamente pendendo para um lado seguramente inesperado. O fato de ser registrado e vendido como documentário não quer dizer que ele certamente o seja, e na própria internet existe muita controvérsia quanto a natureza real do filme. Fiquem com a dúvida até assistirem, após busquem informações, é uma dica. 

De qualquer forma, em Catfish há uma inteligente utilização de elementos da web, como mapas virtuais e a própria brincadeira inicial com o logotipo da Universal. A estética obedece aos signos de um documentário mais rústico, com pouco tratamento de áudio, partes legendadas em inglês para que entendamos o que os personagens falam longe da câmera, e aparente despreocupação com a beleza do plano, como a fotografia propriamente dita. Falta de habilidade ou cuidadosa construção? Mesmo que seja relevante, a discussão da natureza de Catfish, grosso modo, não interfere na mensagem, na maneira como ele ressoa no espectador. De fato, saber se ele é uma ficção ou um doc influencia o pensamento sobre a forma, que desemboca na exaltação de uma mise-en-scène propositalmente naturalista ou nos méritos dos diretores pela engenhosa mudança do fio documental durante o processo do filme. Porém, ter ciência não modifica radicalmente a sensação amarga que inevitavelmente fica após o final do filme e que evoca questionamentos do tipo “no que a sociedade está se transformando?”. Repito, vejam o filme e depois cacem maiores informações.

Catfish daria uma bela sessão dupla com A Rede Social, não por ambos utilizarem o facebook quase como personagem, mas pela investigação mútua, cada qual em seu registro, destas transformações sociais que vieram junto com a automação e virtualização dos relacionamentos, que já não são assunto novo, mas que somente agora começam a ganhar contornos mais profundos em obras cinematográficas. Enquanto o filme de Fincher toma o fundador do facebook como exemplo da confusão mental e moral de uma geração, em Catfish vemos a que ponto chegamos como espécie, lembrando que isto só o começo, que a catástrofe de proporções sociais que nos aflige, pelo menos a alguns, que de qualquer forma não são poucos, tende a ganhar contornos ainda mais dramáticos. Documentário ou ficção, Catfish é um belo filme sobre a construção das relações, do agora ao porvir. Sendo um documentário, é um belo doc que se construiu no processo. Sendo ficção, é dotado de invejáveis construções, de atmosfera, ritmo e de roteiro, e um desfile de impressionantes interpretações realistas. Mesmo sendo tão bom, não espere, infelizmente, um lançamento comercial no Brasil (descartando a hipótese de um milagre), pois geralmente histórias com este nível de relevância, não combinam com pipoca e refrigerante nos cinemas dos shoppings, estes cercados de praça de alimentação por todos os lados.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A Estrada de McCarthy

Olá, caro amigo-leitor!

O início de contato com autor de grande renome na cultura é sempre emaranhado de responsabilidades. A aura que o cerca praticamente obriga ao espectador certa dose de complacência, negando desagrados, mesmo em nível subconsciente. No final de 2010 iniciei a jornada por A Estrada, do cultuado literato norte-americano Cormac McCarthy.

A falta de vírgulas e a usurpação gramatical em dados momentos, soam como erros, do autor ou de sua tradução tupiniquim. Vejo-me no lamaçal da ignorância sem saber ao certo o que afinal é de fato, todavia acredito que faça parte do estilo de McCarthy, ao menos neste livro, talvez para reforçar o aniquilamento de regras do mundo apocalíptico esboçado em suas 234 páginas da edição brasileira.

O enredo se edifica sob a relação afetuosa entre pai e filho, estes nunca nomeados, num cenário de sucateamento do planeta, o qual sofreu e ainda sofre uma espécie de incineração plena, sem distinção de área urbana ou rural. Os poucos sobreviventes vagam entre corpos, cinzas, neve, escassos recursos, destroços e, essencialmente, medo. O medo guia significante gama de ações e reações, desde o alerta constante, até o assassinato e o canibalismo, inerentes ao quadro isento de moral e justiça.

A dicotomia entre o bem e o mal é uma distinção difícil a ser estabelecida pelo pai, o que gera confusão na concepção do pequeno garoto. A moldagem de sua personalidade, em ambiente de valores deturpados e inexorável glaucoma crônico, serve como obstáculo acrescido aos naturais e apocalípticos, na lenta peregrinação dos heróis.

Não li, contudo conheço de forma rasteira o mangá (quadrinho japonês) setentista, Lobo Solitário, onde pai e filho com o auxílio de um carrinho de bebê rústico, vagam pelo Japão feudal, em meio a massacres e a uma realidade mísera quanto a valores morais e éticos. Em A Estrada, há também um carrinho de supermercado, utilizado pelos protagonistas para armazenarem seus poucos itens de sobrevivência.

O livro, vencedor do Pulitzer de 2007, ganha adaptação de boa repercussão na sétima arte em 2009 sendo o talentoso Viggo Mortensen sua viga mestra. Caso a adaptação fosse outra, própria de uma pinacoteca, certamente predominaria o tons cinza e traços fortes e marcantes do seu idealizador.

A Estrada é uma obra literária de enormes méritos, quando seu autor nos conecta a um mundo sem nenhum tipo de atrativo. A esperança que move os personagens centrais da trama é quase surreal e bastante tênue. O suicídio é uma forma de escaparmos covardemente de nosso destino, salvo motivado por alguma enfermidade. Porém, a fuga em, A Estrada, seguidamente surge como caminho único e inapelável.


Até breve.

PS. 01: Obrigado pelo presente, Isa.
PS. 02: Segue abaixo o trailer do filme.



domingo, 16 de janeiro de 2011

O Lago do Cisne Negro

 
Geralmente evito escrever sobre um filme logo após a sessão, principalmente quando dele gostei muito, à guisa da emoção. Neste momento, em que o visto ainda não sofreu o processo de decantação, quando ainda não maturou, para sabermos se a experiência por ele proporcionada foi duradoura ou um efêmero deslumbramento, é normal cometermos erros de julgamento, falando precipitadamente. Mas há filmes que me tiram este temor de dar uma opinião apressada, pela maneira como se impõem, pela forma como se apresentam. Cisne Negro, o mais recente trabalho do diretor Darren Aronofsky fez com que eu perdesse o medo do julgamento leviano. Permito-me iniciar dizendo que este é o melhor, mais sóbrio e completo filme da carreira do cineasta, que não mais pode ser tratado como promessa. O artista vive num eterno processo de busca, e Cisne Negro certamente não será o ápice da carreira de Aronofsky, como se este filme fosse o cume, e o porvir somente imitação ou mero descenso. Mas esta obra, pelo menos ao que diz respeito a minha opinião, provavelmente será um divisor de águas, por mostrar a maturidade do artista e de seu olhar.

Em Cisne Negro temos Nina, brilhantemente interpretada por Natalie Portman, que faz uma aspirante a primeira bailarina no famoso Lago dos Cisnes. Se me permitem a digressão e quebra do fluxo do texto, devo dizer que o elenco deste filme é uniformemente primoroso, proeza que podemos delegar aos próprios talentos, sem dúvida, mas, quando há uma coesão tão grande entre os núcleos, não podemos deixar de exaltar o diretor e seu trabalho no campo da dramaturgia. Findo o desvio. Vemos Nina suar, ensaiar exaustivamente em busca do papel principal do espetáculo, um papel duplo, o Cisne Branco e o Cisne Negro. Nina é doce, acanhada, pueril, e se encaixa perfeitamente na tipologia da ave branca, mas tem imensa dificuldade de se soltar, de seduzir e mostrar-se mais imperativa como o Cisne Negro. O que se vê a partir de então são ensaios, os esforços do diretor para que o lado negro desabroche em Nina, sua mãe superprotetora, uma bailarina frustrada que vê na filha a possibilidade do sucesso que nunca alcançou, e uma Nina psicologicamente fragmentada, atormentada por visões, neuroses e uma bailarina novata, não tão obcecada pela perfeição quanto ela, que desestabiliza ainda mais, tanto seu processo criativo quanto sua sanidade.

Cisne Negro é metafórico, simbólico e profundamente pessoal. É um filme movido por sua personagem principal, pelas elucubrações de uma mente que não consegue suportar as pressões: de ser artística e emocionalmente perfeita, de atender as expectativas de um diretor brilhante e de uma mãe que sempre foi farol, de assumir uma posição de destaque, de ser mulher, mesmo quando ainda dorme num quarto perfeitamente decorado para uma menina de dez anos. É um filme que fala do duplo. O opressor e o belo permeiam Cisne Negro, reforçados pela câmera de Aronofsky, que dança junto aos bailarinos, como que nos convidando ao movimento, ao passo que segue quase que incansavelmente uma Nina fracionada. O clima é sublinhado por uma belíssima trilha sonora, que evoca o balé, o Lago dos Cisnes, como metáfora da vida de Nina, e a necessidade que ela tem de, completando o processo de crescimento, alçar um voo como a majestosa e graciosa ave que dá nome a seus personagens. O sexo também desempenha papel fundamental em Cisne Negro, catalisador de diversos processos.

Complexo sem hermetismos, Cisne Negro é permeado por possíveis interpretações psicológicas, por complexos e projeções. Em suas alucinações Nina vê em Lilly seu duplo, como se fosse a faceta negra do cisne gracioso que ela é, mas podemos ver na mãe um duplo possível, caso Nina fracasse como bailarina, e em Beth, a artista por ela substituída, um equivalente futuro, como se aos artistas, o inexorável fluxo temporal e o consequente envelhecimento, trouxesse um final amargurado. Ser substituída é, sem dúvida, um dos maiores temores de Nina. O topo e a queda, percurso incorrigível que se desnuda frente aos olhos da jovem bailarina que vê o fantasma da derrocada oprimi-la, precocemente, assim que o sucesso a alcança. Darren Aronofsky filma a dança de maneira sublime, e dela viramos íntimos, mesmo que nada conheçamos de passos e coreografias. Natalie Portman com sua iluminadora e visceral interpretação, mostra a candura de uma menina, impelida a virar mulher, que não consegue fazer esta passagem sem traumas, estes que evocam fissuras do passado, que as aumentam com o tempo e a pressão. Cisne Negro é um dos grandes filmes da temporada, um pesadelo mental emoldurado por Tchaikovsky. Sem dúvida, um dos filmes mais perturbadoramente belos que vi nos últimos tempos.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

127 Horas em 90 minutos

Olá, caro amigo-leitor!

O competente e talentoso diretor Danny Boyle, de Quem quer ser um milionário? e Trainspotting, exibe seu profundo conhecimento cinematográfico ao realizar 127 Horas, obra que relata os momentos de angústia vividos por seu protagonista, o engenheiro-aventureiro Aron Ralston, quando este tem o braço direito preso entre as rochas de um canyon, longe de qualquer contato humano. O filme possui uma tênue história, arquitetada sob o eixo das sensações que o personagem, quase único, experimenta ao longo de mais de 1 hora estagnado no plano físico. Sua mente alça voos como um corvo solitário, planando sobre passadas ações e reações, pinceladas de um convívio social de pouco agrado, e destino. O destino recorrente na filmografia recente de Boyle, como bem salientado pelo Marcelo Müller, irmão e companheiro de jornada, após a aparição dos créditos finais.

Há tempo para questionamentos. O ser humano é um animal necessariamente social, contudo existem os que negam esta faceta de sua natureza, preferindo o retiro. A possibilidade de viver assim, alheio aos laços que nos acorrentam à sociedade, bem como às suas convenções, é real. E a realidade moldada a partir de preceitos concebidos fora de um grupo ou que o renegam, se mostra mais dolorosa, mais difícil. As relações entre as pessoas, por mais conturbadas que possam se descortinar, aliviam a dor de viver.

Os homens são frágeis, no tocante ao psicológico e carnal. A carne somente sobrevive se nutrida, limpa e zelada. Caso nos privem do básico, que é bastante, logo adoecemos. Em poucos dias, famintos nos tornamos puro instinto e o instinto nos guia à sobrevivência, sem medir moral. Despimo-nos de qualquer valor ou preconceito. Somos, no cerne, carne e osso vagando, quando nutridos, por dignidade.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Cota de tela: o verdadeiro drama no cinema nacional

Desde o governo de Getúlio Vargas, na década de 30, o cinema nacional possui uma legislação que beneficia (em tese) as produções realizadas em nosso país. Os filmes que são produzidos no Brasil são protegidos pelo decreto nº 7.414, que reserva espaço para a exibição de obras nacionais em salas de cinema. Em seus últimos dias de mandato, o agora ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto com as cotas de tela para 2011, consideradas pelos mais otimistas como extremamente benéficas para a distribuição do cinema nacional.

O decreto, que é o terror para a maioria dos exibidores braisileiros, nunca foi a solução adequada para o problema de distribuição de obras nacionais no país. Embora tenhamos um histórico recente de bons números para o cinema nacional, seja em renda ou em número de espectadores, tais dados se referem a um número restrito de produções e não reflete a condição precária da distribuição do cinema nacional dentro do nosso país.

De acordo com a Abraplex - Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex, a reserva compulsória de mercado viola princípios básicos como a relação entre oferta e procura, a liberdade de iniciativa empresarial em atividade privada, a previsibilidade do risco do empreendedor e a inadequação do produto aos mercados.

No ano passado, por exemplo, o Brasil atingiu 19% do faturamento do mercado interno de consumo de obras cinematográficas, sendo um dos 15 países do mundo que mais assistiu a seus próprios filmes. No entanto, se lembrarmos que 2010 foi o ano de filmes muito populares como "Chico Xavier", "Nosso Lar" e do fenômeno "Tropa de Elite 2", esse números se justificam e demonstram que, dentro dos 80 filmes brasileiros lançados entre 2009 e 2010, apenas um número mínimo de produções ganharam notoriedade e um público satisfatório.

A cota de tela para produções nacionais em 2011 tem números bastante maiores do que o dos anos anteriores, definidos pela Ancine - Agência Nacional do Cinema de acordo com os filmes que serão lançados no ano que se inicia e com as estimativas de público. Os números são obtidos após consultas com representantes de produtores de cinema, distribuidores e exibidores. Para 2011, complexos de cinema com 6 ou 7 salas deverão exibir no mínimo 9 filmes nacionais durante o ano, com um período de 63 dias de exibição. Espaços de apenas uma sala, durante 28 dias dentro do ano, devem exibir no mínimo 3 filmes nacionais.

Como um remédio que ameniza uma doença mas não a cura, a cota de tela garante espaço de exibição para produções nacionais mas não o mais importante: o público. Já é histórico o preconceito que muitos brasileiros têm com o cinema nacional, respeitando apenas produções de grande apelo popular ou com temáticas específicas de interesse próprio - como a onda dos filmes espíritas, que periodicamente ocupam nossos cinemas.

A política brasileira utiliza o argumento de que a cota de tela contribui para a distribuição de filmes nacionais dentro do Brasil - o que não está incorreto. No entanto, tais ações e esforços são nulos para a grande maioria desses filmes, que ficam destinados à festivais de cinema e mostras. Ainda que o país possua eficazes leis de incentivo para a produção de cinema, não existem saídas eficientes e realmente válidas para a distribuição dessas obras, assim como para a formação de público. Caso este último dedicasse uma pequena porcentagem do entusiamo que aplica ao futebol no país, o grande problema com as produções brasileiras estaria resolvido. No entanto, infelizmente, o cinema não é nossa paixão nacional.


domingo, 2 de janeiro de 2011

A Erva do Rato e o olhar torto


Um homem, uma mulher e a câmera de um cineasta radical, que não torna fácil a vida do espectador, que não lhe carrega no colo como se dele fosse tutor. Júlio Bressane, um dos mais contestadores cineastas de nossa cinematografia, apresenta com seu recente filme, A Erva do Rato, outra de suas adaptações anti-convencionais, aqui utilizando como base dois contos de Machado de Assis. Bressane não se curva aos artistas que toma como ponto de partida, não só busca a linha narrativa que lhe permita passar histórias do papel para as telas, como que num processo de transferência automática. Bressane potencializa signos, reinventa a narrativa, mistura gêneros, transmuta personagens físicos em sua câmera, subverte narradores e lhes dá papéis tácteis e visíveis.

Selton Melo e Alessandra Negrini fazem em A Erva do Rato este casal, que promete “viver junto para sempre” no início do filme. O que lhes une não é o amor, que tanto mede a saúde das relações em produções mais convencionais, e sim a dor, a fragmentação que não lhe permite viverem sós. Aceitam-se mutuamente por não poderem ser plenos sozinhos. Ele passa os dias ditando conhecimentos a ela, que anota tudo em cadernos que se acumulam sobre a mesa. Falam sobre venenos, inclusive sobre um chamado de “Erva do Rato” que, segundo ele, não tem cura, mas que durante uma pesquisa, ela descobre ter a dita planta, em si própria, o veneno e seu antídoto. De qualquer forma, ele consegue uma subserviente ouvinte e replicadora. Ela arranja alguém que lhe proteja, não importa a qual custo. Ser escrava dos desejos do homem não lhe é problema. Ele começa a retratá-la, a fotografar sua intimidade, seus seios, suas pernas e sua vulva, objeto de desejo masculino. O sexo nunca se consuma na tela, o desejo é visto através das fotos, do corpo da mulher em preto e branco.

Eis que surge o rato, primeiro roendo as fotos da nudez dela, depois se atrevendo a explorar eroticamente o corpo que o homem só possuí através do registro estático das fotos. O rato é como o intruso entre eles, ou como a personificação do sentimento que desestabiliza o casal, uma vez que traz a ela uma enfermidade e a ele uma obsessão doentia, não se sabe se movida pelo ciúme ou plena em si mesmo. Ele primeiro o quer morto, depois o deseja vivo, para torturá-lo, ou seja, não basta a morte de seu, digamos, rival, é preciso a violência e a barbárie para que haja satisfação. Bressane reforça tudo isto, esta história de duas pessoas que pensam se completarem, com um clima pesado, um lento e progressivo desenvolvimento. O som, muito importante e presente, ora amplia o sentido da imagem, ora soa anacrônico, uma vez que desde roupas até a decoração da casa, tudo soa como se estivéssemos no início do século passado, e não raro ouvimos barulhos de carros, buzinas e outras sonoridades que estabelecem este choque temporal entre imagem e som.

A Erva do Rato é um filme de atmosfera, mas que não nega sua narrativa, fugidia dos padrões, é certo, coerente com a carreira que Bressane desenvolveu até aqui. As imagens, conjunção da fotografia inspirada de Walter Carvalho e do belíssimo trabalho de câmera de seu filho, Lula Carvalho, não por acaso dois dos melhores profissionais brasileiros na área, carregam todo o peso contido nos personagens, que parecem mover-se alheios ao mundo, encerrados dentro de suas próprias existências imperfeitas. O clima hipnótico que Bressane impõe durante todo o filme, faz com que mergulhemos com menos cautela nos personagens, dispensando questionamentos corriqueiros, como os “quandos, ondes e porquês”. E se resta a Bressane carregar o rótulo de vanguardista, de homem de difícil compreensão, a última imagem de A Erva do Rato diz claramente que quando vemos um objeto torto, há a possibilidade de ao invés de este estar desalinhado, que estejamos nós com o olhar deslocado, fora do eixo, impossibilitados em nossa arrogância de assumir o desnível de nossa percepção. Belíssimo filme.

sábado, 1 de janeiro de 2011

O Cangaceiro e o cinema que o povo desconhece


Fico fulo da vida quando uma pessoa me diz que não gosta de cinema brasileiro. Sei que não tenho razão em me indignar, afinal de contas é facultado a qualquer um, gostar de qualquer coisa, mas que fico me mordendo para fazer uma ou duas perguntas aos que proferem isto, ah isto eu fico, e digo sem vergonha da irracionalidade. A verdade é que existe um preconceito. Aquela história de “a grama do vizinho sempre é mais verde” parece a regente do pensamento de muitos quando o assunto é o cinema da terra brasilis. Nada contra (mentira, é só para ficar mais politicamente correto, o correto seria “tudo contra”), mas custa se informar um pouco, deixar de ver mais do mesmo, menos globochanchada e prestigiar mais dos bons cineastas que temos, antes de dar uma opinião que muitas vezes ainda remonta à eras em que nas telas do Brasil se viam mais pelos pubianos do que de rostos?

Ver um exemplar nacional bom sempre traz à tona esta indignação, e isto, ver um filme brasileiro bom, é algo que renova também um sentimento de orgulho que vez ou outra me toma de assalto. Aos que fazem parte da turma do “cinema nacional nem a pau Juvenal”, digo que esta sensação de arrebatamento não é tão esparsa assim, principalmente se levarmos em conta o histórico do cinema no Brasil, e de obras-primas que estão por aí, incensadas pela crítica, mas anônimas para muita gente que, por falta de conhecimento, aí sim, falam bobagem. Resolvi assistir ontem O Cangaceiro, de Lima Barreto, e como ele me provocou este arrebatamento, também suscitou todo este pensamento que articulei até agora.

E como é bom O Cangaceiro. No filme,  o bando do Capitão Galdino vive de pilhar cidades, estuprar, sequestrar, enfim cometer vilanias. Quando chega num povoado, o Capitão resolve seqüestrar a professora e pedir resgate. Seu fiel escudeiro Teodoro se apaixona pela moça, foge com ela buscando seu salvamento. A partir daí temos três jornadas que constantemente prometem se chocar: Galdino e seus homens, Teodoro e sua amada, e ainda a volante montada para pegar os cangaceiros. O filme tem uma bela montagem, influenciada pelo estilo soviético dos anos 20 e 30. Possui ainda alguns dos elementos clássicos do western americano, a se destacar alguns enquadramentos tipicamente fordianos que jogam com a perspectiva agigantadora do horizonte, a música tema, ouvida com variáveis ao longo do filme, e o psicologismo, característica de alguns diretores estadunidenses da época, que faziam das jornadas épicas do oeste, uma metáfora do desenvolvimento interno de seus personagens.

O Cangaceiro é um filme seminal, o precursor do que na época ficou conhecido como “nordestern”, os filmes de cangaço embebidos dos signos dos faroestes americanos. Vencedor do prêmio de Melhor Filme de Aventura do Festival de Cannes e responsável por, na época, alçar o nome do roteirista e diretor Lima Barreto às rodas de conversa sobre cinema no mundo todo, este é um filme praticamente desconhecido de uma massa, do qual ele muito se aproxima, não por ser raso (até por que se falasse isto, estaria eu colocando no público a pecha de rasteiro), mas por ser cinema cheio de signos populares, principalmente pelos traços culturais do povo nordestino. O lançamento do DVD, previsto para o ano que vem, após minucioso processo de recuperação e remasterização, promete aliviar um pouco esta injustiça, com um de nossos filmes mais reconhecidos (no exterior). É o que eu digo, as pessoas podem até achar um filme, ou uma cinematografia toda, ruim, mas para sair aos quatro ventos bradando contra, e por que não, também a favor, é preciso, no mínimo, conhecer.