sábado, 22 de dezembro de 2012

Scanners – Sua Mente Pode Destruir


Como um filme ruim pode ser tão bom? É possível algo rudimentar e simplista ser, de fato, instigante e delicioso de assistir? Tais indagações sobrevieram à sessão de Scanners – Sua Mente Pode Destruir, um dos cults do cineasta canadense David Cronenberg. A trama curiosa dos telepatas nascidos em experiências de laboratório só poderia dar liga pelas mãos de alguém que investiga o bizarro com talento e constância. No filme, Cameron Vale é cooptado pela empresa ConSec para dar fim à tirania de Darryl Revok, assim como ele, um desses sobre-humanos chamados scanners. A insurreição precisa ser freada, e ao protagonista resta infiltrar-se para miná-la internamente.

Há algumas observações muito interessantes nesse universo tipicamente cronenberguiano. Os scanners prescindem de qualquer esforço corporal, utilizando suas carcaças como sustentáculo do que realmente importa e faz diferença: a mente. Como parar um revoltoso capaz de manipular seus censores, levando-os até mesmo ao suicídio (ou seria homicídio?)? Os sistemas prisionais comuns tiram a liberdade pelo encarceramento, mas o que fazer quando o confinado transcende limites físicos? Há de se exaltar, da mesma forma, a encenação proposta, o climão acentuado pelo engenhoso uso do som, os ótimos efeitos especiais e a vanguardista maquiagem.

Paralelo aos méritos, porém, sobram inconstâncias e clichês em Scanners – Sua Mente Pode Destruir: o vilão caricatural, a mulher que ajuda o “mocinho” (elo frágil entre ele e seu algoz), o desvelar dos questionamentos como torrente sem força, entre outros. O filme é uma espécie de cartão de visitas do que Cronenberg viria a conceber com maestria, não indo mais longe por se ressentir de desenvolvimento coeso e soluções menos batidas. Então, repito, como um filme ruim, ainda assim, pode ser bom?

Quando há extremado talento, como no caso de David Cronenberg, até mesmo em realizações tortas abundam lampejos magistrais que teimam em contradizer chavões e obviedades. Alguns momentos geralmente não salvam o todo, mas em se tratando de Scanners – Sua Mente Pode Destruir, como ficar alheio, por exemplo, à visceralidade da ligação psíquica homem/máquina (premonição?) ocorrida em dado momento, e mesmo ao bloco final que, a despeito de sua inocuidade enquanto manifestação (e fraco justamente pela revelação “sem peso”), traz inesquecível duelo psíquico, cujas maiores vítimas são, vejam só, os corpos?


Publicado originalmente em Papo de Cinema

sábado, 15 de dezembro de 2012

Moonrise Kingdom


O mais novo filme de Wes Anderson incumbiu-se de abrir o prestigiado Festival de Cannes deste ano. A honra, sem dúvida, veio coroar a interessante carreira desse diretor de estilo facilmente reconhecível, sobretudo pela maneira como estrutura a narrativa e também por meio dos personagens que cria. Assim sendo, são necessários apenas fragmentos de contemplação para saber-se diante de algo com a grife “Wes Anderson”, artista responsável por Os Excêntricos Tenenbaums, Viagem a Darjeeling, O Fantástico Sr. Raposo,  entre outros. Há, em semelhante proporção, defensores e detratores dos tipos e situações inusitadas que povoam obra tão sui generis.

Em Moonrise Kingdom, uma fictícia ilha na costa da Nova Inglaterra é abalada pelo desaparecimento de dois pré-adolescentes. Toda sociedade local se mobiliza pelo resgate, desde o policial interpretado por Buce Willis, passando pelo chefe de escoteiros vivido por Edward Norton, chegando ao casal de advogados defendidos por Bill Murray e Frances McDormand. Entram também nessa caçada, a brigada escoteira e, ainda, uma agente forasteira do serviço social (Tilda Swinton). Noutro extremo, os fujões (Sam e Suzy) aproveitam o afeto como ignição de crescimento. É bonito ver o périplo dos pequenos amantes através da mata, ele utilizando técnicas de escotismo e ela os “poderes” da visão estendida pelo binóculo, ambos fugindo de realidades desestimulantes e meios excludentes.

Por trás de todo o colorido (a fotografia enfatiza tons de verde), dos personagens cartunescos e da progressão marcada pelo artificial, há uma série de articulações que amparam o filme, evitando sua queda na zona da simples observação do esquisito. Exemplo disso é a crítica embutida no comportamento dos pré-adolescentes de idade mental (ou emocional) superior a dos adultos um tanto infantiloides. São impagáveis as cenas dos meninos conversando num tom quase solene, assim como aquela em que Sam e Suzy descobrem o corpo um do outro, entre apalpes e ereções. Servem como contraponto, a retidão posada do chefe dos escoteiros, e a, no mínimo tresloucada, dinâmica matrimonial dos advogados.

Se há algo que deponha contra Moonrise Kingdom é a pouca ressonância do núcleo adulto, principalmente se levarmos em conta seu time estrelado. A estrutura do roteiro lega a atores como Murray e McDormand, por exemplo, o mínimo espaço da coadjuvância e, a bem da verdade, todos os outros marmanjos servem igualmente de escada para o elenco jovem. Também pesa negativamente a reiteração das temáticas (amadurecimento, afetividade, coragem, dedicação e amor), uma vez que elas não encontram amplitude nos desdobramentos da trama. Wes Anderson apoia-se, mais uma vez, em figuras exageradas vivendo momentos nonsense para fazer de Moonrise Kingdom uma delícia de ver. Pena o encantamento da sessão não sobreviver intacto ao tempo que transcorre implacável após ela.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A dois sobre O Processo do Desejo


Eu e a querida Ana Carolina Grether, colaboradora contumaz do nosso blog e editora do Blue Velvet (espaço calorosamente recomendado), resolvemos partilhar mesmo separados geograficamente uma sessão de O Processo do Desejo, filme de Marco Bellocchio, para depois construir algo a quatro mãos em conversa via MSN. O resultado da experiência segue abaixo.

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Tenho o direito de gozar de teu corpo, e este direito eu o exercerei sem que limite algum me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar. (Marquês de Sade)

Como poderíamos classificar O Processo do Desejo? Não seria simples encaixar o filme de Marco Bellocchio em qualquer gênero. No início, quando transita em meio às obras de arte, a personagem Sandra parece menos definida enquanto pessoa e mais como sensação espontânea, um ser guiado pelo desejo (palavra esta que, aliás, aparecerá diversas vezes no texto). Pouco importa o passado dela e suas aspirações. Ficamos vidrados no olhar provocante e curioso que lança a pinturas e estátuas. Sandra está em consonância com seu desejo, absorta frente ao quadro de Da Vinci no qual a mãe amamenta seu filho. O olhar da criança no retrato revela o traço incestuoso e ao mesmo tempo terno próprio do amor materno.

Sandra vacila no instante em que poderia gritar para sair do museu. A porta fecha e ela dá meia volta, sem lamentações. A partir desse momento, sobretudo após surgir o enigma Lorenzo, o filme adquire atmosfera onírica, porém sem perder contato com a realidade. Homem e mulher são então regidos por algo que não lhes permite reação. Ela e seu desejo (represado) de ser possuída ali no museu, enquanto ele - espera-se que o macho aborde a mulher disponível - é "obrigado" a tê-la. Sandra mostra-se, até certo ponto, histérica. Lorenzo é libertário, maduro e atraído pelo inconsciente dela.

Logo a jovem precisa sair da posição de desejante, negando o intuito de fazer amor, ao passo que ele (afirmativo por excelência) segue firme. Há embate entre desejo e “necessidade”, certo e errado digladiando-se. O sexo aparece quase num bailado, feito de pequenos coitos interrompidos até a “aceitação” final. O sol da manhã trás consigo chave reveladora que “autoriza” a mulher a culpar seu parceiro, ou seja, ela goza, aproveita, mas precisa acusar o outro para justificar seu ato (de prazer).

Após elipse genial e incisiva, vem o julgamento. Sandra leva Lorenzo à corte, literalmente. O réu dá lição de consciência ao juiz e, de alguma maneira, o depoimento autopiedoso de Sandra o complementa. Dessa passagem em diante nota-se com clareza a encenação de O Processo do Desejo como que buscando transcender o real precisamente por tocar algo tão íntimo e verdadeiro que parece irreal, dados os códigos sociais.

Giovanni, promotor encarregado de apontar o dedo condenatório, é afetado sobremaneira pelo caso. Cartesiano, ele defende Sandra, mas se vê confuso especialmente diante do acusado. Mônica, esposa do magistrado, acende a fogueira que periga consumi-lo, tomando as dores de Lorenzo, grosso modo, pois ela mesma é incapaz de gozar com seu marido, uma vez que ele transa como se fosse obrigado e não desejoso. Ao julgar Lorenzo, Giovanni aprisiona e condena a si mesmo. Desolado, parte em jornada particular de autoconhecimento num cenário pastoril onde, lá pelas tantas, pensa estar salvando uma mulher do estupro. Após o incidente, ele finalmente deflagra o complexo jogo do desejo, por vezes camuflado de qualquer coisa mais banal.

No fim, Giovanni e Lorenzo são como duas faces da mesma moeda. O advogado de valores sociais bem introjetados desajeitado para sedução, e o arquiteto sem a moral dominante, talentoso no entendimento do bel-prazer. Já as mulheres (Sandra, Mônica e a campesina) possuem traços comuns e representam o feminino complexo. Afinal, o que querem as mulheres? Justamente o desejo. Dentro de tal cenário, os homens de O Processo do Desejo são malditos, seja por sua impulsividade (Lorenzo) ou culpa (Giovanni).

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Puro



O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard é citado em Puro (2010) a partir da máxima “A coragem é a única medida da vida”. Para Katarina, jovem que vive à margem de Gotemburgo, na Suécia, coragem e filosofia soam distantes de seu sofrido cotidiano ao redor de uma mãe alcóolatra, um namorado omisso e a falta de quaisquer perspectivas para sua vida. Isso até que ela, ao acaso, descobre em Mozart um estímulo invisível para penetrar num mundo que não lhe parecia existir.

A essência de Puro não está distante da obra Pigmalião, de George Bernard Shaw, mas funciona como uma versão muito mais cruel e melancólica desta. Na história, levada às telas no delicioso My Fair Lady (1964), de George Cukor, um professor esnobe oferece a cultura e sofisticação da alta sociedade para uma pupila ignorante. No drama sueco, Katarina conhece o maestro Adam e absorve entusiasticamente tudo o que ele lhe apresenta – além de Kierkegaard, Beethoven, o poeta Gunnar Ekelöf e o maestro austríaco Herbert Von Karajan, que a fascinam. A jovem de 20 anos retribui ao se entregar para Adam sem medo algum de corpo e alma, literalmente. Dizer que ele é casado já permite uma compreensão acerca dos inconvenientes gerados a partir do encontro dos dois.

Lisa Langseth fez sua estreia na direção com Puro ao adaptar uma peça teatral de autoria própria, que inclusive já havia sido montada com Noomi Rapace como protagonista – atriz que despontou no cinema a partir da versão sueca de Os Homens Que Não Amavam as Mulheres (2009) e Prometheus (2012). Langseth foi perspicaz ao desenvolver sua trama num roteiro polido e silencioso, sagaz ao permitir que a força de seu filme apareça justamente nos diálogos e ações de seus personagens e na atuação de seu casal protagonista, brilhantemente interpretado por Alicia Vikander e Samuel Fröler. A direção da cineasta, econômica e segura, demonstra mais a maneira contida de privilegiar grandes histórias – escolha comum a grandes conterrâneos de Langseth, como Ingmar Bergman e Jan Troell – do que um possível receio de errar. 

Os atores de Puro mereceriam um artigo à parte. Samuel Fröler apresenta a maturidade de um intérprete que compreende e respeita a verdade de seu personagem – assim como às difíceis transformações que o mesmo sofre durante o arco narrativo de Puro. Alicia Vikander, por sua vez, revela segurança e domínio surpreendentes para alguém pouco mais velha que a garota que retrata. A atriz entende a complexidade emocional de Katarina e a desenvolve de maneira contida e pontual, evidenciando a volubilidade da jovem no inconstante período de sua vida. Os enquadramentos de Langseth privilegiam uma capacidade nata da atriz, que tem o dom de parecer deslumbrante em uma cena para, segundos depois, se transformar em alguém frágil e destrutível, passível de grande pena. Alicia Vikander deve em breve ser revelada ao mundo, talvez já a partir de sua participação em Anna Karenina (2012), de Joe Wright.

Retomando o filósofo que abre o texto, Kierkegaard também já registrou que “Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é perder-se”. Feliz da cineasta Lisa Langseth, que ousou realizar um drama denso como Puro e fez de seu primeiro filme uma grande obra, que merece ser descoberta.


Publicado originalmente no Papo de Cinema.

domingo, 2 de dezembro de 2012

O Descobrimento do Brasil


Nos idos de 1937, o cineasta mineiro Humberto Mauro, prócere da cinematografia nacional (praticamente desconhecido pela massa,) aventurou-se na seara do longa-metragem para falar sobre o descobrimento do Brasil pelos portugueses. Se hoje, com todos os incentivos existentes e meios facilitados de produção, está difícil estabelecer um cinema sólido no país, imagine o cenário há mais de 70 anos, quando o próprio meio ainda tateava suas possibilidades enquanto forma de expressão. Mas que fique bem claro: essa introdução não intenta prestar-se à complacência, pois O Descobrimento do Brasil possui méritos sem régua nas eventualidades de produção.

Por um pouco mais de uma hora, veremos uma espécie de resumo da empreitada dos lusos até a terra de Vera Cruz, história que todos aprendemos na escola, porém sem as nuances além do oficioso. Oscilando entre descrições didáticas e dramatizações elaboradas (estas servidoras de apoio àquelas), O Descobrimento do Brasil quase cai em terreno movediço, uma vez que não ficam claras as intenções do diretor entre o já mencionado didatismo e a construção de um olhar próprio. Curiosamente estruturado tal exemplar mudo, com movimentos de câmera e decupagem intrínsecas aos filmes silenciosos, O Descobrimento do Brasil é sonoro, de poucas falas, é verdade, mas bastante influenciado por sotaques estrangeiros e barulhos da mata. Sobressai-se também, naquilo que concerne ao ouvido, a bela partitura de Villa Lobos (ele mesmo).

A chegada dos desbravadores marca o melhor de O Descobrimento do Brasil. Passada a fase de apresentação, mais descritiva que argumentativa, nota-se Humberto Mauro, em sua síntese particular, disposto a explorar com afinco o choque cultural existente entre o branco e o índio, por meio da catequização deste último. Após a sedução por meio dos objetos do homem civilizado, o índio tem comprometida sua raiz ancestral, que é maculada de maneira irreversível.

Humberto Mauro aproveita situações, sobretudo a construção de uma gigantesca cruz – e a belíssima cena dos índios a carregando, para situar o descobrimento como instante em que escoa a pureza do homem brasileiro.  Dessa maneira, lança olhar amargo sobre esse momento histórico e definidor do paraíso onde abundava o pau-brasil, logo excepcional ao extrativismo e ao consequente esmagamento da cultura originária. Não à toa, o conquistador necessita da colônia prostrada ante seus símbolos de dominação. Mudou muita coisa em mais de 500 anos?


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Tropas Estelares


Adaptação do romance de ficção científica escrito por Robert A. Heinlein e publicado na The Magazine of Fantasy & Science Fiction entre outubro e novembro de 1959, o filme Tropas Estelares transformou-se em cult com o passar dos anos. A sátira militarista orquestrada pelo diretor Paul Verhoeven parte do ambiente escolar, onde Johnny Rico, entre flertes e outros expedientes estudantis, resolve alistar-se na Federação (espécie de governo central) apenas por que a namorada sonha em ser piloto. A trama se passa num futuro estilizado, no qual o conceito de cidadania está estritamente ligado ao alistamento, ou a alguma forma de negação da individualidade. Johnny não precisa ser “cidadão” (seus pais têm dinheiro), mas a vontade de impressionar sua garota o leva a almejar o engajamento.

Inepto na matemática (a habilidade nesse quesito lhe garantiria um posto avançado), o rapaz é levado à infantaria móvel, regimento de combate direto a ameaça que vem do planeta Klendathu: insetos gigantes e hostis. Lá terá de lidar com a saudade da amada, a insistência de uma garota por ele apaixonada e também com a tensão gerada após cada missão, cujos rastros de morte e desolação são inevitáveis. Muitos teimam em ver a progressão narrativa de Tropas Estelares como reafirmação diegética do poder bélico. A meu ver, configura-se quase no oposto, pois questiona a ética das forças que levam milhares de jovens a combater em frentes desconhecidas.

Tropas Estelares é um filme violento, e essa brutalidade vista na tela é constante servidora de um viés crítico. Durante a guerra, chegam apenas números às pessoas que dela não participam, mas, é bom humanizar-se, pois sob cada um deles existem vidas ceifadas por conflitos muitas vezes arbitrários. Os soldados vitimados pelos insetos naturais de Klendathu sofrem mutilações e outras barbáries nas mãos de seus opositores. Somos testemunhas de um verdadeiro banho de sangue, talvez para que dimensionemos o real teor das perdas. Ainda assim, até o espectador mais sensível provavelmente ficará estranho às inúmeras mortes de extraterrestres, ao passo em que sentirá cada baixa humana. A análise é clara: compadecemo-nos apenas de nossos semelhantes, legando indiferença aos outros.

O quadrilátero amoroso de Tropas Estelares é apenas um distrativo que traz algum romance ao entorno, porém sem muita importância ao real intento de Paul Verhoeven que é o olhar satírico/amargo do furor militarista na dominação ou expurgo do alheio. A sociedade vista no filme celebra uma cidadania torta desde cedo, trata com naturalidade crianças segurando armas e almejando uma carreira quase suicida. Tropas Estelares se desenrola em duas frentes: a primeira mostra típico embate entre humanos e inumanos, edificando heróis num drama sangrento; já a segunda expõe seu substrato nevrálgico, contextualizando a guerra e a trajetória do protagonista numa realidade essencialmente militar e, por que não, totalitarista. Mais uma vez Verhoeven navega pelo mar das aparências, as desvelando magistralmente, conforme sua especialidade.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Uma sala para enriquecer a pérola


Em tempos de massificação, salas em shoppings, programação uniforme e outras tantas constantes entre exibidores, é um alento perceber trabalhos assertivos como o realizado pelos curadores da Sala de Cinema Ulysses Geremia, localizada no Centro de Cultura Dr. Henrique Ordovás Filho, em Caxias do Sul. A cidade da Serra Gaúcha, apelidada carinhosamente de “pérola das colônias”, tem fama de progressista, mas, mesmo assim, ainda engatinha quando o assunto é cinema, seja na produção ou na valorização do mesmo enquanto arte.

Juntando os dois maiores complexos comerciais da cidade, são 12 salas de exibição cinematográfica com o que há de mais moderno. Boas instalações, sabores variados de pipoca, estacionamento com segurança, 3D e tudo que as atuais tendências do “ir ao cinema” englobam. Então por que esse espaço acanhado, de boas (mas não excelentes) condições técnicas, é o mais importante dos locais propostos a exibir cinema em Caxias do Sul? São diversos os fatores, mas o principal deles é mesmo a qualidade da programação, não subserviente aos desígnios de um mercado voltado à lotação desenfreada.

Com capacidade para 100 pessoas, a Sala de Cinema Ulysses Geremia abriga sessões em DVD às tardes, com o “Matine às 3”, projeto que visa fidelizar determinada parcela do público, não raro instigada a frequentar as sessões de inéditos, que ocorrem das quintas aos domingos, sempre com filmes de circuito (35mm) e média de 200 espectadores por semana. Um filme pouco conhecido, como A Fonte das Mulheres, tem cerca de 150 espectadores por semana, e títulos de maior apelo, como A Árvore da Vida ou A Separação, chegam a ter 250 espectadores semanais.

Dentre os responsáveis pelo vigor da Sala de Cinema Ulysses Geremia, destacam-se seus dois curadores, o filósofo, escritor e também coordenador da Galeria de Arte Gerd Bornheim, Gilmar Marcílio, e o publicitário Conrado Heoli. Quando abraçaram a dura tarefa de resgatar um espaço até então incipiente, escravo de DVDs já lançados, eles sabiam das dificuldades. Impulsionados pela paixão que nutrem, arregaçaram as mangas e hoje estão satisfeitos, mantendo-se sempre atentos à necessidade de reforçar e expandir essa linha que vem dando certo. A Sala teve considerável aumento de espectadores desde que alterada a proposta de seleção dos filmes e reforçada a divulgação. Os freqüentadores, antes minguados, agora abundam em sessões das mais variadas e nos debates que ocorrem logo após algumas delas.

Para cada mês, ou seja, 02 filmes, Conrado e Gilmar assistem por volta de 10 títulos em busca daqueles que melhor se encaixam nessa nova proposta curatorial. Conrado Heoli resume bem a alegria com o atual momento: “A resposta do público não poderia ser melhor, temos cada vez mais espectadores e o retorno que recebemos direta e indiretamente é muito positivo”. Cumprindo imprescindível papel à formação de público, sendo alternativa aos cinéfilos e apreciadores, principalmente os da Serra Gaúcha, a Sala de Cinema Ulysses Geremia é um bom exemplo de que basta boa vontade, perspicácia, e uma pitadinha de amor no momento de pensar sessões para que, mesmo longe dos blockbusters, se consiga algo como o alcançado por esses bravos defensores do bom cinema em Caxias do Sul. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 17 de novembro de 2012

Robocop: O Policial do Futuro


Mais que um clássico da Sessão da Tarde, Robocop: O Policial do Futuro é exemplar da veia criativa e intrépida de seu diretor, o holandês Paul Verhoeven. Quem mais assumiria um filme ultraviolento, repleto de observações críticas a políticas vigentes e ao jeito americano de viver, sendo financiado por um grande estúdio, e sairia impune, ou melhor, consagrado? Só alguém como ele, cujo trabalho mais famoso é este sobre um policial recém chegado à Detroit, reconstruído cyborg após ser massacrado pelo crime organizado local. A cena, inclusive, é brutal, bem ao gosto de Verhoeven, sempre disposto a exagerar (ou seria trazer mais para o real?) os efeitos da violência. Nada de economia no sangue, sendo decapitações e outras atrocidades visuais também parte do cardápio.

Assim que renasce – em ótima cena subjetiva, onde o olhar digital substitui a visão orgânica, o policial Alex Murphy vai às ruas, trazendo status e dinheiro a seus criadores. Mesmo resolvendo delitos, enlevando a moral dos locais, está longe de virar solução definitiva. Combatentes da delinqüência continuam sofrendo em seus expedientes, sendo expurgados moralmente das jurisdições. A maioria crê numa greve como forma de chamar atenção para as precárias condições de trabalho nas ruas infestadas de marginais. O discurso de Robocop: O Policial do Futuro é, assim, político na essência e possui clara postura anti-neoliberalismo, já que a polícia falida de Detroit é administrada por uma corporação particular de interesses além do bem estar da população. Na verdade, ela se alimenta do crime para alavancar uma obra de total remodelação urbana, é claro, vantajosa financeiramente.

Mas há também em Robocop: O Policial do Futuro, além desse fundo politizado, a marcante dualidade de Murphy. Quando descobre quem é, em meio a fraturadas reminiscências de sua condição, surge a necessidade de vingança (instinto puramente humano) contra Clarence Boddicker, o líder da gangue que quase o levou à morte. Esqueçamos dos efeitos puramente catárticos das desforras estilizadas com frequência por Holywood, nas quais, findas as missões, restam os falsos sentimentos de dever cumprido. É óbvio que Robocop busca uma “descarga” proporcionada pelo sofrimento de quem o fez padecer, mas sua condição aponta, sobretudo, à necessidade de libertar-se enquanto indivíduo, logo que se descobre um. Matar para efetuar essa reparação devolve a Robocop algo de humano, no fim das contas.

Paul Verhoeven é um grande diretor, disso não há dúvida. Sua maneira de arquitetar a natureza política do filme, não o sufocando com panfletos e imperativos, tornando-o acessível e profundo, é própria daqueles que procuram ampliar mensagens e não segmentá-las. Notem como ele utiliza sabiamente o recurso do telejornal para apresentar o mundo que circunda os personagens da trama. Prestem atenção, também, na re-humanização gradativa de Murphy, em seu trajeto doloroso atrás do homem que nunca mais voltará a ser. Atentem, ainda, para as múltiplas camadas, sobretudo aquelas que interligam ação e drama. Robocop: O Policial do Futuro é mais um filme notável de Paul Verhoeven, artista de genialidade muitas vezes confundida (talvez por miopia) com banalidade.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

E a Vida Continua...


Desde o sucesso inesperado de Bezerra de Menezes: O Diário de um Espírito (2008) tem-se destacado um gênero no Brasil: o filme espírita. A afirmação veio com o estrondoso sucesso de Nosso Lar e os bons desempenhos comerciais de seus co-irmãos.  Não há dúvida, o cinema espírita vem garantindo sua fatia muito mais pela identificação do público com as tramas do que necessariamente por eventuais qualidades narrativas. Antes que as primeiras pedras venham, cabe um alerta: isto é uma crítica cinematográfica, propõe-se a análise da obra dos homens, não da suposta obra de Deus, ok?

Dito isso, E a Vida Continua... pega carona na onda, sem qualquer mérito enquanto cinema. Baseado num livro psicografado pelo médium Chico Xavier, que seria, por sua vez, ditado pelo espírito André Luiz, centra-se num relacionamento forçado entre dois pacientes terminais, a jovem Evelina e o já balzaquiano Ernesto, irmanados no infortúnio de uma doença, logo parceiros nas primeiras vivências além da vida. Juntos, aprenderão os estágios pós-morte, os conceitos da reencarnação e outros meandros do espiritismo.

O maior pecado de E a Vida Continua... é, exatamente, o caráter didático que o preenche. Ao passo em que os desencarnados são instruídos no novo plano, submetemo-nos, enquanto espectadores, a pílulas “elucidativas” da crença.  A música melosa e sentimentalista emoldura situações à beira do risível, soando assim, imagino, até mesmo aos seguidores dos preceitos legados por Allan Kardec. Eveline vê-se no centro de um melodrama dos mais chinfrins, com assassinatos, adultérios, submissões, ou seja, vícios e virtudes, encenados de maneira doutrinária.

As interpretações de E a Vida Continua... merecem capítulo à parte, pois todas em tons erráticos. Exemplo disso é o trabalho equivocado de Luiz Carlos Feliz como o marido da protagonista, cujo desempenho monocórdico em nada auxilia seu personagem de construção pífia. Cai na caricatura, sinal não só de ineficiência do intérprete, mas, e a julgar pela ruindade geral (vista também em atores como Lima Duarte, Ana Rosa, e outros), da evidente falta de tato na direção de atores.

E a Vida Continua..., do ator e diretor Paulo Figueiredo, não poderia ser mais desastroso, pois, sobretudo, preocupado em capitalizar sobre a fé e seus seguidores. Toscamente decupado, montado de maneira frouxa, de dramaturgia frágil, e nulo mesmo enquanto palestra religiosa, ele desmerece até a alcunha de “amador”, dadas suas inúmeras precariedades. O limbo da cinematografia nacional está de bom tamanho a algo assim.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 10 de novembro de 2012

Toda Nudez Será Castigada


Uma das muitas adaptações de Nelson Rodrigues para o cinema, Toda Nudez Será Castigada fala sobre um homem enclausurado em seu luto até conhecer Geni, prostituta que o leva a rever a viuvez e a promessa feita ao filho de nunca mais possuir mulher alguma. Bem ao estilo rodriguiano, o texto entrelaça uma série de personagens, utilizando como argamassa o desejo, a traição, o ciúme, o corno e outros elementos que povoam os escritos do chamado “Anjo Pornográfico”. No cinema, essa construção é filtrada pelo olhar de outro artista, o não menos carioca Arnaldo Jabor, conhecido apenas como comentarista televisivo por muitos, cuja carreira no cinema merece reconhecimento, sobretudo se levarmos em conta seu trânsito pelas particularidades da classe média. 

Então, temos aí um filme em que convergem olhares, visões de mundo completamente distintas, como não demoraremos a perceber ao longo da sessão. Rodrigues é cáustico enquanto Jabor prefere ser irônico. A família do viúvo interpretado por Paulo Porto é um prato cheio às observações do cineasta sobre elementos e composições daquele estrato social, no meio termo entre a pobreza e a burguesia. A encenação prima pelo deboche ao invés da seara duramente mordaz proposta pelo universo rodrigueano. Alguns matizes se perdem na transposição, sendo o filme prejudicado pelo humor em que se apoia na buscada leveza negada deliberadamente pelo escritor carioca. 

Como Gina, a desbragada Darlene Glória capta para si as maiores atenções. Aliás, ao redor de sua personagem paira todo dilema moral do filme, é por ela que o cliente se apaixona, indiretamente através dela se dá a prisão e posterior incidente boliviano com o herdeiro de seu amado e, finalmente, é por meio de seu corpo que a complexa relação pai/filho chegará às vias da sordidez. Jabor guarda a essa intérprete os melhores momentos e seu mérito reside essencialmente em não castrá-la, deixando o furacão – de sensualidade e intensidade dramática, chegar com força em quem vê. Sua figura, bem como o filme num todo, suscitou polêmicas quando de seu lançamento. Pena Toda Nudez Será Castigada, decorridos quase 40 anos, bater um tanto datado na tela, já sem a mesma força. 

Toda Nudez Será Castigada surge como documento da época em que o cinema brasileiro debatia-se contra uma série de problemas inviabilizadores da produção cinematográfica contínua. O misto de sexualidade aflorada e culpabilidade rende uma série de embates interessantes, porém mais instigantes caso fossem construídos (sobretudo do meio em diante) compassadamente ou com um pouco mais de foco. A tão conhecida veia crítica de Jabor se esvai em meio ao humor duvidoso e diluidor de sua vitalidade irônica. Toda Nudez Será Castigada deve seus méritos muito mais a Nelson Rodrigues que a Arnaldo Jabor, mesmo o último não se curvando ao primeiro, é bom que se diga. Ao cineasta nossas homenagens pela coragem, já ao dramaturgo as láureas pelo encadeamento de personagens e circunstâncias, infelizmente sem ecos tão nuançados enquanto cinema.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O cinema mágico de Méliès em São Paulo

Exposição sobre 'pai da ficção científica' passou pelo Brasil e atraiu cinéfilos.
Matéria escrita por Gabriel Gilio, em colaboração ao The Tramps.



That's one small step for a man, but one giant leap for mankind. A famosa frase do astronauta americano Neil Armstrong ecoa no universo até hoje expressando o sentimento dos habitantes do planeta Terra ao ver um dos seus pisando na lua pela primeira vez, em 1969. Não foi pela primeira vez, porém, que essa imagem foi transmitida. Mesmo que por meio de uma produção cinematográfica, o homem já havia presenciado essa cena 67 anos antes (e, segundo os amantes das teorias da conspiração, também usando técnicas de cinema foi que se pôde presenciá-la outra vez, mas essa já é outra história).

Em 1902, o mágico do cinema Georges Méliès criava a produção que o faria conhecido: o curta-metragem Viagem à Lua (Le Voyage Dans La Lune), que inseriu um mundo de fantasias no imaginário da época. A obra, que fazia uso de técnicas de ilusionismo ligados à efeitos de edição, deu ao artista o título de "pai do cinema de ficção científica e dos efeitos especiais"."Mais do que inventar histórias de uma maneira como elas nunca haviam sido contadas até então, Méliès direcionou o olhar do público para uma arte que estava nascendo e ainda enfrentava muito ceticismo", explica o publicitário e cinéfilo Conrado Heoli. "Seus filmes até hoje impressionam pela estética apurada e artifícios deslubrantes para uma época de recursos tão limitados".

Com a invenção do "Cinematógrafo" pelos Irmãos Lumiére, em 1895, o homem passou a poder registrar a imagem em movimento. No ano seguinte, os irmãos inventores presentearam o futuro mágico do cinema com um exemplar de sua criação. Mal sabiam eles que estavam colocando nas mãos do artista a ferramenta que ele precisava para direcionar a sétima arte para os caminhos que ela trilha hoje. Até Le Voyage, todas as produções concebidas eram quase que exclusivamente documentárias, mas Méliès fez diferente, pois abriu as portas do sonho, da ficção, para que o cinema fosse definitivamente criado. A ficção científica foi só o princípio da descoberta de um mundo de histórias que passariam a ser contadas em todo o planeta, inclusive no Brasil.


O país do futebol, no entanto, não tem a mesma tradição com a câmera na mão do que tem com a bola no pé. Apesar de ter em sua história alguns curtas do início do século XX (como Duelo de Cozinheiras, de 1908, e O Fósforo Eleitoral, de 1909), o país não desenvolveu a arte audiovisual. Segundo Conrado, nosso cinema nunca teve boas incursões na ficção científica como o fez com a comédia e o terror, por exemplo. "Nossos espectadores, por outro lado, sempre tiveram bons olhos para o cinema fantástico - porém, os direcionam para as obras estrangeiras. Penso que, talvez, seja uma tendência pela falta de grandes recursos para a produção nacional, ou por uma falta de ousadia de realizadores nacionais."

Há, porém, um otimismo em relação à produção de filmes de ficção científica no Brasil, atualmente. Em uma busca rápida pela internet, pode-se facilmente encontrar produções "caseiras" que não perdem em muita coisa para os grandes estúdios. Existem, também, as páginas criadas por esses próprios cineastas que produzem, dirigem, editam, escrevem e filosofam o tema. O blog Sci Fi do Brasil, por exemplo, explica que "a produção de filmes de ficção científica deve ganhar força e reconhecimento no Brasil, com os novos produtores independentes em seus 'home studios', sendo possível graças ao avanço tecnológico dos computadores, câmeras e softwares, e a sua disponibilidade a um preço atualmente acessível à uma grande parte da população brasileira".

Incentivando a discussão acerca do tema, o Museu da Imagem e do Som (MIS) apresentou uma exposição inédita no Brasil sobre o pai da ficção científica. Concebida pela Cinémathèque Française, "Georges Méliès, o mágico do cinema" reuniu objetos, desenhos, cartazes, figurinos, documentos originais e fotografias do artista. Aberta de 4 de julho à 16 de setembro, a exposição apresentou o artista a quem não o conhecia e, aos fãs, proporcionou experiências "incríveis", como define o visitante Otávio, que foi prestigiar a obra do cineasta francês e não escondeu a emoção: "Nunca fui muito ligado à filmes de ficção científica, mas sou fã do Méliès. Ele era supercriativo".



Crédito das fotos: Gabriel Gilio, divulgação.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Luz nas Trevas, A Volta do Bandido da Luz Vermelha


De que maneira se continua um filme do porte de O Bandido da Luz Vermelha? Como ecoar no presente questões político-sociais altamente identificadas com os anos 1960, sem parecer um resmungão parado no tempo? Helena Ignez e Ícaro Martins, baseados no roteiro do já falecido Rogério Sganzerla, conseguem, a meu ver, superar esses e outros desafios em Luz nas Trevas, A Volta do Bandido da Luz Vermelha. Eles capturam a essência do antecessor, reverenciando-o em cena aberta com originalidade.

O bandido está na cadeia, mitigando sua estadia com boas refeições, visitas íntimas e o alcance de uma consciência superior. Continua aquele iconoclasta inconfundível, bradando contra o sistema penitenciário com a mesma verborragia empregada no desagravo aos políticos. Surge Tudo-ou-Nada, seu herdeiro. Paramentado tal o pai, ele parte numa jornada existencial e delinquente, na qual enreda a namorada. Tudo-ou-Nada é o personagem de Paulo Villaça retrabalhando para nossa época, paradoxalmente com os mesmos signos que fizeram de O Bandido da Luz Vermelha um dos mais importantes do cinema brasileiro. Enquanto isso, o Luz original (vivido agora por Ney Matogrosso) amadurece seu plano de fuga, profetizando novos tempos.

Luz nas Trevas, A Volta do Bandido da Luz Vermelha é homenagem desbragada, consegue retomar questionamentos sem anacronismo e atualiza o mito ao promover transição entre o velho e o novo. Entretanto, segue esquadrinhando o círculo vicioso impingido ao terceiro-mundista, este dominado por diversos poderes. O fogo expurgatório e a música que lava a alma sinalizam anárquica luminosidade no fim do túnel, em contraponto ao suicídio da retórica no filme de Rogério Sganzerla. Otimismo próprio de nossa época, em tese, mais branda. Bela realização, sem dúvida. 

sábado, 27 de outubro de 2012

Jorge Mautner – O Filho do Holocausto


O músico, compositor e escritor brasileiro Jorge Mautner (nome artístico de Henrique George Mautner) é um homem de alma livre que, paradoxalmente, como ele mesmo diz, faz psicanálise por pressão pública. Não iremos longe no estudo da música popular brasileira se omitirmos sua obra, repleta de letras bem humoradas e melodias contagiantes. A veia de escritor é menos alardeada, mas basta lembrar o prêmio Jabuti de literatura recebido por Deus da Chuva e da Morte para se ter a real dimensão do artista completo que Mautner de fato é. O filho do holocausto assim nominou-se num livro de memórias, basilar do roteiro fílmico, por ser fruto de pai judaico e mãe vienense, herdeiro do êxodo empreendido por muitos quando do nazismo. Enfim, é mais que bem-vindo algo como Jorge Mautner – O Filho do Holocausto, exatamente por lançar luz sobre este brasileiro essencial.

Dirigido por Pedro Bial e Heitor D’Alincourt, o filme é todo captado em estúdio, seja na atmosfera em que Mautner lê trechos da própria biografia, depois local de encontros reveladores, ou mesmo no palco onde celebra seus principais sucessos, não abdicando das performances que o caracterizam. O início é bastante esquemático, Mautner se lê e logo após vem uma de suas canções. Apenas o fato de ouvir boa música no cinema já é alentador, mas o filme quase cai no marasmo nessa primeira e engessada parte. Felizmente logo se infiltram no tecido narrativo alguns momentos cuja diversidade ajuda a sublinhar com mais riqueza esse tipo, feito de muitos.

Figuras carimbadas de nossa arte desfilam na tela, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nelson Jacobina (falecido recentemente). Eles contam as peripécias de Mautner e reeditam parcerias. Das filmagens de O Demiurgo, dirigido por Mautner na casa do amigo Arthur de Mello Guimarães, em Londres, com participação de Gil, Caetano, José Roberto Aguilar, Péricles Cavalcanti, Leilah Assunção, entre outros, às passagens nebulosas, tudo passa pelo palco em música. Pode-se objetar o bom gosto estético dos cenários montados, e principalmente seu caráter restritivo. Aos diretores parece importante criar um universo paralelo e inadvertidamente falso para acolher um tipo tão sui generis como Mautner.

Sem dúvida o ponto alto de Jorge Mautner – O Filho do Holocausto é o encontro afetivo entre o artista e sua filha, Amora Mautner. A mulher reclama de seu nome (feminino de amor), causador de muitos infortúnios, sobretudo na época da escola, e lembra passagens constrangedoras como a nudez constante dos pais e a vestimenta inusitada com a qual a buscavam na escola, porém sem esconder o orgulho de ser filha de quem é. Jorge Mautner apenas ri, concorda e, eventualmente, complementa, sempre com o olhar terno rebatido na mesma medida por Amora. Então, mesmo estanque e formalmente desfavorável à personalidade libertária de seu biografado, Jorge Mautner – O Filho do Holocausto oferece um recorte ilustrador desse artista crente na profundidade eterna da alegria. Alguém que diz "ou o mundo se brasilifica ou vira nazista”, é ou não um tipo para lá de interessante?


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 21 de outubro de 2012

O Som ao Redor


Experiente enquanto crítico de cinema, Kléber Mendonça Filho também é tarimbado na realização de filmes, pois construiu ao longo dos anos uma sólida carreira como curta-metragista. São dele alguns títulos como Recife Frio, no qual faz a insólita dedução de como seria a capital pernambucana caso o calor fosse subitamente trocado pelo frio mais comum aos brasileiros do Sul. Aliar sua erudição cinéfila à vontade e ao talento para produção iria, hora ou outra, desembocar na seara do longa-metragem ficcional (ele já havia dirigido o longa documental Crítico). Dessa maneira, O Som ao Redor é o debut de Kléber no formato. Vem angariando prêmios e aplausos em diversos festivais pelo mundo. Será que “perdemos” um crítico arguto e “ganhamos” um cineasta não menos interessante? 

Em O Som ao Redor, há a observação do cotidiano de uma vizinhança recifense, com todas as diferenças existentes entre seus moradores. Na verdade, o foco se estreita sobre uma rua que passa a ser monitorada por determinado serviço particular de vigilância, conseqüência da necessidade de proteger-se contra a violência urbana desenfreada das cercanias e do próprio vandalismo de alguns moradores. Mesmo calcado num choque social evidenciado pelas relações de trabalho e também por alguns (e reveladores) planos aéreos que delineiam na tela os limites entre a classe média amedrontada e a vida pobre crescente no entorno dessas propriedades duramente supervisionadas, O Som ao Redor passa ao largo do mero choque, até por que não se restringe formalmente ao contraponto social. Então não espere algo como “ricos versus pobres”, pois a observação dos desníveis dessa natureza apenas sublinha a construção. 

Estamos novamente diante das diversas histórias amalgamadas, tão caras ao cinema contemporâneo. A estrutura multiplot funciona em O Som ao Redor, pois Kléber não busca criar ou investigar rigorosamente seus personagens (mesmo que de alguma forma o faça), mas registrar à sua maneira um “estado das coisas”. É percorrendo essa corda bamba, sem perder o equilíbrio, que o filme instaura-se na deliciosa zona de risco habitada enquanto lhe convém, para logo a transpor quase com habilidade de veterano. Assim sendo, não devemos atentar em demasia aos núcleos encerrados em si, mas sim entendê-los como frações indivisíveis de um todo. O rapaz que cuida dos imóveis do avô, um anacrônico senhor do engenho enclausurado em suas propriedades, é tão importante ao filme quanto a mulher de cotidiano perturbado por um cachorro que late intermitentemente, afeita a cigarros de maconha e simples afazeres domésticos. 

Chama a atenção o desenho sonoro de O Som ao Redor, aliás, título mais que pertinente a um filme construído muito fora do quadro, justamente por meio dos sons e ruídos de um bairro orgânico mesmo que inserido num contexto puramente cinematográfico. O uso expressivo da sonoridade mostra a pulsão da vida na rua e confere um tom acima do real ao encenado. O filme, então, fica circunscrito num espaço físico determinado, mas o transcende pelos barulhos externos infiltrados nos planos. Numa cinematografia como a nossa, pelo menos me valendo de olhar retrospectivo recente, não lembro algo empenhado dessa maneira em utilizar as sonoridades, sobretudo os ruídos, com caráter tão significativo. 

O Som ao Redor é uma obra madura, impressionante tecnicamente, assim como exemplar no rigor proposto por seu diretor que, mesmo ainda tateando a identidade criadora, mescla experiências com sensibilidade. O filme é bastante pensado, mas não soa distante como muitos por aí, e isso se deve, em grande parte, à maneira como os personagens são dinamizados na trama. As referências a alguns filmes que volta e meia passeiam na tela, não apoiam o criador como se fossem muletas ou elementos de afago aos espectadores, surgindo mais como piscadelas discretas àqueles que compartilham paixão pelo cinema. O final evoca de maneira engenhosa a tradição nordestina do coronelismo e dos jagunços vingativos que tanto povoam nosso imaginário relacionado àquela região do país. Kleber Mendonça Filho quase chega a ser brilhante em O Som ao Redor, certamente um belo cartão de vistas (como se precisasse) de alguém que ajuda a construir cinema enquanto escreve e desempenha a crítica quando filma. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 20 de outubro de 2012

CineAnglo #02 - 18/10/2012


Ambientada pelos acordes da trilha memorável que John Williams compôs para um dos filmes mais importantes de Steven Spielberg, aconteceu na última quinta-feira, dia 18, a segunda edição do CineAnglo, projeto de cinema sediado na Faculdade Anglo-Americano/IDEAU de Caxias do Sul. Tubarão foi conferido por uma atenta plateia que testemunhou a permanência da capacidade de entretenimento e impacto dessa obra que mostra os constantes ataques de um tubarão-branco descomunal na pacata Amity.

Na conversa conduzida por Ale Martins, Marcelo Müller e Rafael Müller, foram discutidas curiosidades de produção, os respingos do longa na indústria do cinema e no imaginário popular acerca do animal, a engenhosa construção narrativa de Spielberg e os motivos pelos quais um filme como Tubarão seria amenizado em sua violência (visual e psicológica) caso produzido nos dias de hoje.

Apoiado pela ACCIRS (Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul), o CineAnglo retorna em novembro. Filme, data e convidado ainda serão definidos.

Acompanhe as novidades em www.facebook.com/CineAnglo
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Faculdade Anglo-Americano/IDEAU
Rua Feijó Junior, 1049 - São Pelegrino - Caxias do Sul – RS
Fone: (54) 3536.4404

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Adeus (e obrigado), Sylvia Kristel


Lembro bem de meu período adolescente, dos hormônios fervilhantes que resultavam, entre outras situações constrangedoras, em ereções involuntárias, comuns a todo garoto imberbe.  Meninas deixaram de ser “grupo rival”, passando a “objetos de desejo”. Sessões da tarde, poucos compromissos, amores “incontroláveis” (ou seja, nuvens passageiras), amigos de escola, televisão, e tudo aquilo que arrefece quando chega a vida adulta.

Também como a maioria dos guris da minha idade, eu era vidrado no Cine Band Privê, sessão dedicada ao chamado soft pornô nas madrugadas da Rede Bandeirantes. Um peito revelado parecia o máximo da transgressão. Na era pré-internet (popularizada) era assim: burilar nossa imaginação sexual ainda soava como ato deliciosamente infrator. Hoje está tudo no google.

Na época, dava um jeito de meu irmão mais novo, o Rafa, adormecer cedo (geralmente aconselhando-o descansar para a plena recuperação de suas forças infantis), me posicionava confortavelmente na cama e esperava iniciar o Privê. As práticas onanistas nem precisariam ser mencionadas, pois implícitas.

Meus filmes prediletos naquelas antemanhãs da Band eram os da longeva série Emanuelle. E a mais icônica das Emanuelles, Sylvia Kristel, morreu na noite de ontem, aos 60 anos, vítima de um câncer na garganta. Então, a rememoração afetiva transcorrida até aqui, é uma homenagem a essa mulher que me ajudou a descortinar a beleza do olhar, do corpo, enfim, da sensualidade feminina. Obrigado, Sra Kristel.

domingo, 14 de outubro de 2012

Um Tira Acima da Lei


Um Tira Acima da Lei é daqueles bons filmes que chegam ao Brasil diretamente em DVD, ou seja, na tese mercantil, abaixo de inúmeras porcarias que “contaminam” nosso circuito exibidor. Fruto da recente (e boa) safra de diretores americanos menos preocupados em gestar apenas sucessos de público, Oren Moverman, cuja credencial mais expressiva enquanto realizador era, até então, O Mensageiro (confesso, ainda não vi, mas li maravilhas a respeito) dá claros sinais de talento nesse longa-metragem que foge do amplamente comercializável por ser violento, seco e complexo à sua medida.

Nele, o tira do título (quem no Brasil chama policiais de “tiras”?) é um sociopata que dimensiona bem a truculência da lei no condado de Rampart. Veterano do Vietnã, David Brow, ou simplesmente “Estuprador” – como seus colegas o chamam, possui uma ficha repleta de inconstâncias e acusações, legítimas defesas não tão autênticas assim. No plano pessoal, tem filhas de casamentos falidos com duas irmãs, uma após a outra, como bem frisa frente à dúvida da herdeira mais nova sobre o imbróglio familiar. Acusado de racismo depois de espancar um cidadão negro, se mostra bastante articulado e meticuloso para alguém supostamente desorientado por lembranças da guerra.

Moverman não parece lá muito disposto a investir em psicologismos e tentativas de justificar as atitudes do protagonista pela via do trauma. David se assemelha mais ao tipo “alistado pela vontade de matar com licença no front” do que próximo ao “regresso sequelado”. Através da abordagem, calcada no roteiro escrito em conjunto com o grande literato James Ellroy, o cineasta reforça esse caráter irascível de David, valendo-se do acúmulo de situações para fazer emergir alguém só não totalmente abominável, pois construído de camadas reveladoras.

É um crime (desculpem o trocadilho) Woody Harrelson, em desempenho irrepreensível, não ter colhido maior reconhecimento na temporada de prêmios por seu trabalho em Um Tira Acima da Lei. O onipresente David parece sempre no fio da navalha, entre o céu não almejado e o inferno ao qual se resigna, e Harrelson é o maior responsável por essa sensação limite que guia a trama. A narrativa volta e meia ameaça descarrilar, ser tragada pelo turbilhão da figura central e perder-se em questionáveis enquadramentos e outras opções fotográficas. Felizmente há tato suficiente para manter o filme na esteira das produções americanas que não trilham o rastro de mediocridade deixado por alguns de seus conterrâneos. Melhor assistir algo como Um Tira Acima da Lei em casa do que ir ao cinema ultimamente.


Publicado originalmente no Papo de Cinema 

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Panorama do Cinema Mundial: "Pietà"


Com a crescente tendência de que filmes tenham os títulos alterados por suas distribuidoras quando lançados no mercado nacional, minha sugestão para a Califórnia Filmes é que Pietà, 18º filme de Kim Ki-Duk, seja rebatizado como Piegas. Não soa muito distante do original e seria mais honesto com seus espectadores. 

Cineasta que coleciona prêmios, Ki-Duk tem entre suas obras mais incensadas filmes como Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera, O Arco e A Ilha. Após um pequeno hiato afastado dos grandes festivais, ganhou os holofotes novamente – sabe-se lá porque – com uma obra manipuladora, tendenciosa e repleta de seus maneirismos cinematográficos. Interessado em discorrer sobre as consequências do capitalismo extremo, segundo suas próprias palavras, Pietà fica longe disso e demonstra apenas a destreza do diretor em retratar dramas existenciais com extrema superficialidade.

Pietà se inicia com uma sucessão de pequenas sequências que apresentam o “implacável” Gang-Do, que trabalha cobrando devedores de um agiota e os amputando, quando os mesmos não possuem recursos para pagar suas dívidas. Cada pequena história é introduzida com uma apresentação prévia do devedor para que o espectador crie uma empatia com o mesmo – o que serve para que a tortura posterior infligida pelo protagonista seja mais revoltante. Quando uma misteriosa mulher bate em sua porta, no entanto, toda sua rotina se desestabiliza e a violência deixa de servir como escapismo para sua realidade.

Kim Ki-Duk abandona seus recorrentes questionamentos filosóficos e referências orientais para apostar em sensações rasas e desinteressantes. Pouco inspirado na direção, as maiores surpresas, no entanto, ocorrem a partir de seu roteiro, que enfatiza frases risíveis como “Eu não me importaria de morrer por suas mãos” e “Não culpe ele, ele cresceu sem amor”. As resoluções morais do filme, de que vivemos em um mundo impiedoso, vingativo e que não deixa espaço para redenção, são óbvias e colaboram para que o drama central de Pietà se torne tedioso e repleto de inconsistências. Como se não bastasse, o protagonista perde toda sua força quando tem sua personalidade transformada de forma brusca e nada crível a partir da chegada da supracitada mulher.

A partir do segundo ato, Pietà é desenvolvido ao redor de um mistério de resolução que pode ser antecipada facilmente. Ki-Duk insere alguns indicativos que podem levar seu espectador a prever a solução de sua história – o que, uma vez ocorrido, faz com que o filme perca ainda mais sua força narrativa. Sem a surpresa - talvez um dos trunfos reservados por Kim Ki-Duk para sua obra - o grande vencedor do Festival de Veneza deste ano surpreende apenas pelo sentimentalismo excessivo e banalidade com que o cineasta retrata seus temas.

sábado, 6 de outubro de 2012

Esquecíveis: "Colegas" e "Terra Esquecida"


Marcelo Galvão tem entre seus longas os divisores de opiniões Quarta B, Rinha e Bellini e o Demônio, então nada mais curioso que seu projeto seguinte resultasse em Colegas, uma comédia sensível protagonizada por três jovens com Síndrome de Down. Stalone, Aninha e Márcio são os garotos que fogem de um instituto inspirados pelo filme Thelma & Louise e partem para uma jornada que transforma suas vidas e o próprio road movie em algo muito distante do Na Estrada de Walter Salles. 

Sensação no Festival de Gramado, onde recebeu o prêmio de Melhor Filme, Colegas quase funciona como um ótimo entretenimento juvenil, não fossem os constantes desvirtuamentos de valores, ou como um bem sucedido feel-good movie – título que escapa da obra de Galvão pelos apelos óbvios, inconsistências do roteiro e convencionalismos do gênero. Ainda assim, pelo carisma do trio de atores principais e boas referências ao cinema, uma sessão despretensiosa de Colegas é mais que indicada. 




Em 1986, um acidente nuclear na usina de Chernobyl transformou a bela paisagem local em uma sofrida região-fantasma. Terra Esquecida acompanha o drama de Anya, Valery e Nikolai, que tiveram suas vidas drasticamente alteradas pela catástrofe e que, independente do ocorrido, não conseguem se distanciar de seu passado na cidade abandonada. 

Primeiro longa-metragem ficcional de Michale Boganim, mais conhecido pelo documentário Odessa... Odessa!, Terra Esquecida apresenta uma tríade de histórias paralelas bastante tristes com as cores opacas do local que retrata. Com a bela Olga Kurylenko como protagonista, o filme peca por não aprofundar adequadamente nenhum de seus núcleos, tornando as supostamente complexas experiências de seus personagens desinteressantes e pouco envolventes. Destaque para a pálida fotografia de Yorgos Arvantis e Antoine Heberlé, que conseguem extrair imagens impressionantes fazendo uso de uma cartela de cores tão limitada.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Première Latina: A Sorte em Suas Mãos


Daniel Burman e A Sorte em Suas Mãos. Sempre grata surpresa assistir a um filme desse diretor que tanto amo. Mas admito, desta vez a visceralidade passou mais longe do que de costume. Visto seu estilo anteriormente em Ninho Vazio, Dois Irmãos entre outros, esperava mais emoção nas cenas sensíveis e sutis, bem a cara do cineasta argentino. 

O enredo é muito bem bolado e se utiliza de humor inteligente, ora ácido, ora bem engraçado. A começar pelo protagonista, figura única e com talento indescritível. Jorge Drexler, ator uruguaio escalado por Burman, dá show como Uriel, pai de dois filhos, divorciado, jogador de pôquer, conquistador e galanteador barato que foge dos sentimentos. Ao arriscar a sorte nos jogos de azar, Uriel reencontra Gloria (antiga namorada) e, a partir daí, precisa lançar mãos dos recursos que conhece para decidir o que fazer. Sorte e azar no amor e no jogo são as apostas de Daniel Burman nessa história muito simpática e pitoresca. 

Infelizmente, a cópia do filme não estava das melhores, bem como a projeção, incluindo falha no som e legenda, culpa do cinema e/ou equipe do FestRio 2012, não sei. Lamentável, pelo simples fato de que se esquecemos um simples crachá, mesmo estando com o ingresso na mão, não entramos, somos barrados literalmente. Já o cinema pode deixar os espectadores aguardando indefinidamente “a pessoa responsável pela legenda da película”, tendo como argumento que estavam sendo muito sinceros, mas não sabiam quando a moça retornaria. Nessa enrolação, decidimos assistir ao filme mesmo sem legenda, e até esse momento já tinham se passado uns bons 15 minutos. Durante a exibição a legenda voltou. A sorte do cinema é que a sessão estava vazia, senão eles teriam bem mais problemas.

Mostra Expectativa: Noor


Noor foi um filme curtinho da Mostra Expectativa do FestRio deste ano, com apenas 78 minutos. Impactante pela temática, mas nem tanto por seu desenrolar um pouco arrastado, acaba menos interessante do que parecia ser. 

Noor é uma mulher que nunca se entendeu como tal, ela deseja ser homem e não se sente parte da comunidade transgênero Paquistanesa. Em certa altura ela começa a trabalhar como homem e decide encontrar uma menina que a aceite como ela é/está.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Destaques: "Cor da Pele: Mel" e "Tudo o Que Você Tem"


Uma das tarefas mais difíceis em um festival de cinema com mais de 400 filmes em sua programação consiste em acertar nas escolhas de obras do qual pouco ou nada se conhece. Cor da Pele: Mel foi um dos meus mais gratificantes acertos até o momento e já se destaca entre os melhores filmes que vi este ano.  

Baseado nas memórias do ilustrador Jung, que dirige o filme ao lado de Laurent Boileau, este suave misto de animação e documentário resgata as passagens mais marcantes da vida do artista cinebiografado, ilustradas com cores e traços deslumbrantes. Emocional e complexo nos temas que aborda, como a adoção e a sensação de não pertencimento ao lugar no qual se vive, Cor da Pele: Mel é um recorte verídico bem sucedido em todas as suas intenções – funcionando como drama, documentário, animação, cinebiografia e um excepcional filme.


O cinema canadense contemporâneo, em especial o realizado na província de Quebec, ganha cada vez mais abrangência com uma série de competentes realizadores que se destacam em festivais pelo mundo. Seja pelas mãos de Denis Villeneuve, Xavier Dolan ou pelo já consagrado Denys Arcand, deve-se atentar cada vez mais para a cinematografia exportada por este país. Depois de assistir a Tudo o Que Você Tem, somo aos cineastas supracitados o nome de Bernard Émond.

Destaque no Festival de Toronto, Tudo o Que Você Tem apresenta o solitário e deprimido Pierre Leduc, professor de literatura que abandona as salas de aula para se dedicar à tradução da obra de Edward Stachura – autor que pontua toda a narrativa do filme com seus poemas existencialistas. Em suas investidas para se afastar de todos, um encontro com o passado faz com que as prioridades de Pierre sejam repensadas. Melancólico e muito maduro, o filme analisa a alienação do mundo contemporâneo com uma delicada abordagem, onde se destaca, além do piano que conduz o sôfrego período da vida de Pierre, a atuação magistral e contida de Patrick Drolet.

Uma joia cinematográfica pouco conhecida e que dificilmente ganhará distribuição no Brasil – o filme sequer está cadastrado no IMDB – Tudo o Que Você Tem permanece com o espectador muito além de seus 90 minutos. Um filme que imprime sensações cada vez mais difíceis de serem obtidas a partir do cinema moderno.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Première Latina: La Playa D.C.


La Playa D.C., de Juan Andrés Arango, filme da Première Latina, apresentado na Mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes 2012, veio com tudo e entusiasmou os poucos espectadores que se prestaram a comprar ingressos para esse longa colombiano cheio de vigor e vitalidade. E muito embora trate de um tema depreciativo, triste e realista (infelizmente), o diretor foca na força que ainda resta naqueles que sofrem preconceito racial. 

Muito bonito e bem intencionado La Playa D.C. apresenta a história de Tomas, um menino negro, colombiano, que precisa lidar com sua própria exclusão e de seu irmão, um adicto que desaparece e deixa Tomas em desespero para encontrá-lo. O filme mostra essa busca incessante do rapaz comprometido com o destino de sua família e com seu próprio rumo, frente às perdas, os ganhos e o preço que se paga apenas por viver com dignidade. 

Um panorama cultural e social da Colômbia nos tempos de hoje com uma bela fotografia e ótimas atuações. Super valeu a pena ter escolhido o pouco aplaudido La Playa D.C.!!

Première Brasil: Meu Pé de Laranja Lima e O Primeiro Dia de um Ano Qualquer

MEU PÉ DE LARANJA LIMA


Baseado no clássico romance juvenil de mesmo título, esta nova adaptação da obra de José Mauro de Vasconcellos apresenta de forma visualmente pouco inventiva a história de Zezé, garoto de família pobre e numerosa que se refugia à sombra de sua árvore para se esquecer dos abusos que sofre do pai, enquanto se perde em seu universo lúdico. 

Dirigido por Marcos Bernstein (um dos responsáveis pelo roteiro de Central do Brasil e diretor de O Outro Lado da Rua), Meu Pé de Laranja Lima se apoia no texto emocional de Vasconcellos, já adaptado ao cinema por Aurélio Teixeira em 1970, porém não o desenvolve de maneira satisfatória para o cinema – entregando um filme monocórdico e até mesmo cansativo. Destaque para a estreia do pequeno João Guilherme Ávila, que encanta como Zezé, e pela performance de José de Abreu como o carismático Portuga. 


O PRIMEIRO DIA DE UM ANO QUALQUER


Ainda apontado por muitos como o Woody Allen brasileiro, Domingos de Oliveira possui pelo menos duas características do cineasta nova-iorquino: filma com uma frequência impressionante e nem sempre entrega obras de muita relevância. Em O Primeiro Dia de um Ano Qualquer, mais uma vez Domingos se cerca de amigos para contar tramas e traumas contemporâneos com o tom cômico e sarcástico que lhe é característico. 

Protagonizado por Maitê Proença, que emprestou sua charmosa casa de campo para servir de locação ao filme, O Primeiro Dia de um Ano Qualquer apresenta um discurso machista e burguês como há muito não se via no cinema nacional. Ainda que certamente faça uma crítica aos mesmos temas, Domingos de Oliveira não se mostra muito preocupado em desenvolver as questões e as entrega em pequenos núcleos que beiram a banalidade. Com uma fotografia errática, o filme não se posiciona muito bem entre o muitas vezes brilhante texto do cineasta e uma novela das seis da Rede Globo.