segunda-feira, 22 de julho de 2013

CINEMA A DOIS | OS DAVIDS - Veludo Azul e Gêmeos - Mórbida Semelhança


Veludo Azul é, provavelmente, o filme mais autoral e incisivo de David Lynch. A pegada neo-noir, estilo admirado e substanciado pelo cineasta, sublinha em cada personagem um caráter de feitura bastante pessoal, como se os mesmos fossem talhados para servir demandas amorosas, pessoais e profissionais de seu criador.

A história, envolvente do início ao fim, é revestida de sexualidade perturbadora e atmosfera suspeita, sendo entremeada de cruéis aspectos capturados pela lente perversamente doce de um Lynch ainda com os pés afixados na tênue linha entre o real e o onírico. Cada detalhe, desde as almofadas de Dorothy Vallens até o número do apartamento (710) e rua (7), faz semblante para o estilo de David Lynch, e condiz, por assim dizer, com seus postulados. Alguns elementos bizarros, como a orelha num gramado qualquer, perturbam o cotidiano da pacata Lumberton, antevendo figuras perigosas, perversas e sádicas, tal o personagem vivido por Dennis Hopper que, aliás, atua brilhantemente.

Ainda sobre as atuações, Veludo Azul (Blue Velvet, no original, título inspirado na canção de Bobby Vintton, presente no filme), é prodigioso de interpretações surpreendentes. Só mesmo alguém do calibre de Lynch para extrair de Kyle MacLachlan um rapaz ingênuo, porém curioso e apaixonado, intimidado, contudo disposto a romper sua fragilidade e imaturidade para, então, adentrar no mundo dos adultos. Da mesma forma, Isabella Rossellini é presenteada não apenas com personagem complexa, mas também com o tratamento imagético que confere a ela dimensão próxima do etéreo. Méritos, sobretudo, da fotografia, quem sabe a mais elaborada da carreira de David Lynch.

A cena final, quando Sandy (Laura Dern, a musa muitíssimo bem aproveitada), em seu inabalável ideal de amor eterno, avista um pintarroxo na janela diz: "Esse mundo é estranho", é a quintessência da visão lynchiana.  A jovem o faz com sorriso nos lábios, compartilhando a excitação e a paixão descoberta por uma vastidão até então impensada, ao mesmo tempo atraente e repugnante. A tríade, perfeita por excelência, é estabelecida: Jeffrey, Sandy e a linda, louca e fugaz Dorothy.

Com Gêmeos – Mórbida Semelhança, Cronenberg se insere num território mais sofisticado, contudo não menos afinado às obsessões estilísticas que marcaram sua criação pregressa. Nele, os gêmeos Mantle (Jeremy Irons, genial), próceres ginecologistas dedicados a curar infertilidade feminina, aparecem, em princípio, enquanto representação dual, ou seja, o irmão bom (Beverly) e o irmão mau (Elliot). Bev, o introspectivo, se dedica à pesquisa, a alavancar a fama dos procedimentos vanguardistas imputados aos dois, enquanto Elly, o expansivo, recebe láureas, reconhecimento acadêmico e se incumbe dos discursos.

Eles compartilham mulheres, valendo-se da irrefutável semelhança física. Num desses joguetes sexuais corriqueiros, Bev se apaixona por aquela que involuntariamente iniciará o doloroso processo de desunião dos “siameses”, libertando um do outro à fórceps, ainda que eles próprios não queiram ou não possam de fato assim coexistir, pois aleijados sem a ligação doentia cujo efeito é fazê-los complementares. O processo de degeneração mental dos irmãos logo mostrará que Gêmeos – Mórbida Semelhança apenas se valeu da polarização inicial entre os protagonistas para que a fusão traumática de ambos - fadados a sofrer na pele os vícios e as virtudes alheios - tivesse o efeito devastador visto antes da derradeira e trágica separação.

Um dado interessante sobre Gêmeos – Mórbida Semelhança diz respeito à utilização expressiva da cor, principalmente o vermelho, para estabelecer conexões entre o horror do sangue derramado em nome da ciência e o mesmo líquido vital que, de outra forma, escorre de crimes e demais brutalidades. Exemplo, a equipe cirúrgica dos irmãos Mantle veste jalecos encarnados, ao contrário do branco característico da medicina. O vermelho não deixa notar o sangue. Ótima e inesquecível sacada visual de Cronenberg. Da mesma maneira, Lynch se apropria do azul, aqui como referência cromática do subterrâneo que emerge violentamente na vida dos estadunidenses interioranos de Lumberton. Tida como sinônimo de tristeza, a cor em Veludo Azul alude, também, ao estado psíquico abalado de Dorothy, figura emoldurada pelo azul da decoração e iluminada pelas luzes da ribalta decadente.

A sexualidade desempenha papel fundamental tanto em Veludo Azul, quanto em Gêmeos – Mórbida Semelhança, muito embora Lynch e Cronenberg não se apropriem de cenas explícitas, deixando as observações acerca do sexo, e a função por ele desempenhada de elemento deflagrador, na esfera do subjetivo, como conduto de ações e reações.  Há, em ambos os filmes, forte apelo à questão inconsciente, isso visto, sobretudo, nas sequências de sonhos: em Veludo Azul, o sonho de Jeffrey (sua amada pede para ser espancada e ele a satisfaz) revela a carga de sadismo por trás da satisfação de prazeres primitivos e proibidos; já em Gêmeos – Mórbida Semelhança, o sonho de Beverly (sua amada literalmente separa-o do irmão, a dentadas), prenuncia a turbulenta tentativa de desligamento parental.

Outo fator de aproximação entre os longas é a relação simbiótica, paradoxalmente complementar. Embora esta seja mais evidente em Gêmeos – Mórbida Semelhança, em Veludo Azul Jeffrey e Frank são partes quase indissociáveis de um indivíduo “completo”, faces da mesma moeda. A ingenuidade Jeffrey se funde à maldade de Frank nas fantasias de Dorothy, ou seja, “sozinhos” não satisfazem o desejo avassalador dela, porém juntos a levam ao êxtase.

Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

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VELUDO AZUL – Por Isadora Ramos 
Veludo Azul foi o segundo filme de Lynch que vi, há uns dez anos. E, naturalmente fazendo uma comparação com o primeiro, Cidade dos Sonhos, lembro-me de ficar surpresa, pois o roteiro era muito mais compreensível, porém, não menos intenso e estranho. À época foi chocante ver a cidade aparentemente perfeita como cenário de todo o tipo de crime e violência, igual a qualquer outro local onde os gramados não são tão verdes e bem cortados. Tem "doença" ali, como em qualquer outro lugar. E, apesar da linearidade na história e do "final feliz", fatores que não esperava encontrar, fiquei por dias lembrando da perversidade de Frank e pensando na tristeza de Dorothy, com uma sensação de inquietude. Dennis Hopper e Isabella Rossellini estão brilhantes e chegam a dar arrepios, por motivos diferentes, mas vale ressaltar que todos os atores estão bem em seus papéis.

Tentei não usar a palavra "estranho", seus derivados e sinônimos neste texto e falhei miseravelmente. Não é muito original classificar um filme de Lynch assim, eu sei, mas que outra palavra melhor? Me sinto estranha ao ver seus filmes. Durante e depois. Estranha, inquieta, intrigada. Com Veludo Azul não foi diferente. Mas acho que aqui, mais que em qualquer outra de suas obras, o adjetivo cabe, afinal os próprios personagens concluem que "é um mundo estranho". Pra mim, é um dos filmes mais fáceis de compreender deste diretor, mas não por isso fácil de esquecer.
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GÊMEOS – MÓRBIDA SEMELHANÇAPor Leandro Reboredo 
Este não é o único filme no qual David Cronenberg declara todo o seu fascínio pelas entranhas do ser humano, literalmente falando. Porém, em Gêmeos - Mórbida Semelhança, ele vai além das vísceras para narrar a história de dois irmãos gêmeos que, diferente do que a versão abrasileirada do título sugere, tem mais diferenças do que sua semelhança física nos permite ver.

O que une os ginecologistas Bev e Elly (interpretados por um impecável Jeremy Irons) são justamente as sua diferenças. Os irmãos são como características complementares e distintas que residem dentro de cada um de nós, nos tornando indivíduos únicos e complexos. E, assim sendo, os dois vivem como apenas um, compartilhando sucesso, experiências e, principalmente, mulheres. Mas, é justamente a relação com uma paciente que desestabiliza a harmonia entre os gêmeos: Bev se apaixona pela atriz Claire Niveau, de quem Elly queria apenas algumas noites de prazer.

O rompimento é explicitamente representado num pesadelo de Bev, onde os médicos são siameses e Claire destrói com os próprios dentes a carne que os une pelo abdômen. É um sinal que o sangue já não consegue mantê-los do mesmo lado. Aliás, o uso pontual de elementos vermelhos durante todo o filme, que tem uma fotografia predominantemente fria, parece predizer que algo não terminará bem. Em suma, tanto nos filmes como na vida, algumas coisas são opostas mesmo tendo muito de si uma na outra: assim são Bev e Elly, assim são amor e ódio.

2 comentários:

  1. Os Davids no cerne de sua obra são perturbadores... VELUDO AZUL acho que vi com pouco amadurecimento "cinéfilo", vale uma revisita.

    GÊMEOS... não vi, mas vou tentar, sabendo melhor o que me aguarda.

    Os textos estão excelentes, Isadora e Leandro, cada um em seu estilo ficaram muito bem juntos!

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  2. Muito bom, pessoal!
    Essa seção do blog está, sem dúvida alguma, muito interessante, além de pertinente.

    Grande abraço.

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