sábado, 27 de dezembro de 2014

Doses Homeopáticas #35


MICHAEL KOHLHAAS: JUSTIÇA E HONRA começa promissor. Primeiro, em virtude de seu trabalho quase artesanal de direção de arte, que recria a França pastoril do século XVI. Depois, por conta de seu enredo, protagonizado pelo comerciante interpretado por Mads Mikkelsen, ele que empreende uma verdadeira cruzada em busca de justiça contra o império que o governa mancomunado com seus opressores. Como esperar reparação se a lei é parcial? Uma pena o roteiro ser tão dispersivo e a direção frouxa ao ponto de enfraquecer sequências que poderiam transpirar mais dramaticidade e emoção. Não há, da mesma maneira, a construção de um cenário (imaginário) suficientemente sólido para que os desdobramentos da trama ressoem além do semblante de Mikkelsen. Aliás, o filme se apoia demais no trabalho excepcional do ator, deixando um tanto de lado seu entorno, o que acaba limitando o envolvimento do espectador àquilo que se passa com o protagonista, tão e somente.


Lukas Moodysson gosta de ambientar alguns de seus filmes nos anos 1980. NÓS SOMOS AS MELHORES se passa também nessa época em que muitos sentenciavam a morte do punk. Nele, duas garotas meio deslocadas resolvem botar a indignação para fora em forma de música. Eis que elas convidam para sua banda recém-formada uma menina também excluída, mas que sabe tocar muito bem e é cristã, ou seja, diferente delas que só fazem barulho e são descrentes. Talvez o que funcione menos no filme seja justo esse terceiro elemento, a colega temente a Deus. A diferença por ela representada não oferece um contraponto significativo às ideias punks das duas meninas principais, e nem se instaura como ruptura convincente (embora seja de fato uma ruptura) à própria garota que logo terá um corte de cabelo radical e trocará o violão pela guitarra. No fim das contas, é um filme muito bom, mesmo que tenha pouca profundidade se comparado a outros de Moodysson.      



2014 ainda guardava uma ótima surpresa para sua reta final: OPERAÇÃO BIG HERO, animação da Disney baseada numa HQ da Marvel. A começar pelo visual muito bem feito, da construção de uma São Francisco orientalizada aos próprios personagens e traquitanas tecnológicas que transformam nerds em super-heróis. Mas não só no plano da imagem o filme sai-se muito bem, pois também sua história é cativante. O garoto que começa meio rebelde logo aprende com o irmão mais velho a canalizar seu talento. Então, de desafiante em batalhas ilegais de robô, passa rapidamente a aspirar uma vaga na escola que incentiva gênios precoces. Claro, com as coisas complicadas ele vai usar isso a favor da montagem de uma equipe heterogênea a improvável de heróis, eles que também contam apenas com a inteligência para combater a ameaça próxima. O filme tem um roteiro muito eficiente, personagens carismáticos, direção inteligente e cenas de batalhas que empolgam. Ótimo entretenimento, para ver sem contraindicações.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Férias Frustradas


Clark (Chevy Chase) só queria passar bons momentos numa típica viagem de férias em família. Sempre muito ocupado no trabalho, vê os filhos crescerem ao largo de sua atenção e, então, decide pegar o carro novo e praticamente atravessar os EUA para alguns dias de diversão no The Wally World, uma propositalmente mal disfarçada alusão à Disney. As adversidades surgem já ao buscar o automóvel na revenda, pois a encomenda do modelo esportivo não se concretiza e ele precisa se contentar com um daqueles bizarros exemplares estadunidenses com partes de madeira nas laterais. Mas férias são férias, e Clark é o primeiro a não esmorecer frente aos problemas, afinal de contas, importante é família reunida, sem relógios-ponto nem horários pré-determinados para fazer isto ou aquilo.

Mal sabe ele que as próximas duas semanas guardam diversas armadilhas responsáveis por transformar seu idílio familiar num pesadelo constante. A começar pela visita aos parentes da mulher. Não bastasse o tempo de convivência com aquela gente estranha, bem arquetípica do interior americano, ele ainda “herda” a Tia Edna, senhora tão chata quanto o cachorro de estimação que, certamente, embarca junto na sequência da viagem dos Griswold. Cada parada, não importa onde for, expõe dificuldades, desde as programadas, como o vislumbre das ruínas do velho oeste, até as imprevistas, tal o acidente num local ermo, este mais parecido com os descampados tão bem utilizados por John Ford nos westerns do passado. Mas Clark segue firme o intuito de proporcionar instantes felizes aos seus.

Férias Frustradas é dirigido por Harold Ramis, mais conhecido por ter interpretado o Dr. Egon nos filmes da série Caça-Fantasmas, e roteirizado por John Hughes, por sua vez, diretor de Curtindo a Vida Adoidado, Clube dos Cincos, entre outros clássicos dos anos 1980.  Quem sabe até mais por influência do último, ou seja, neste caso, da escrita, seja tão divertido e espirituoso, repleto de momentos nonsense e inverossímeis apenas pela sucessão absurda em que ocorrem, mas bem críveis, sobretudo aos que já tentaram fazer uma dessas viagens de “descanso”, percorrendo grandes distâncias de automóvel, em meio a energia infindável das crianças, a ranzinzice daquela tia sempre tão mal-humorada e o próprio cansaço diminuindo o ímpeto lá do início.

Na época um astro, Chevy Chase interpreta o protagonista, esse homem classe média, disposto a fazer tudo certo, mas tragado por eventos alheios ao seu controle, e, com isso, gradativamente perdendo ele próprio a direção. A bem da verdade, quase não existem mais comediantes do calibre de Chase, cujo timming cômico parece dom gravado em DNA. Ele é um dos grandes responsáveis por fazer de Férias Frustradas algo muito divertido de ver. Seja flertando com a modelo na direção do esportivo vermelho estrada afora, ou tentando consertar suas próprias “certezas” na jornada, ele é tão simpático que nos flagramos na torcida pela ocorrência do final feliz em The Wally Word. E ele vem, bem à moda dos Griswold, mas vem, para nossa alegria.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Doses Homeopáticas #34


Quentin Tarantino vinha amadurecendo a ideia de fazer um western, gênero pelo qual sempre declarou admiração. Logo depois de incursionar pela Segunda Guerra Mundial, ele então decidiu entrar de cabeça no Velho Oeste, mostrando a saga de um escravo liberto em busca de sua amada ainda prisioneira. DJANGO LIVRE é esse filme que contém boa parte das marcas registradas do cinema de Tarantino. Nele temos violência estilizada, uma baita trilha sonora, que vai de Ennio Morricone ao rap, piscadelas para cinéfilos – a aparição de Franco Nero, o Django italiano é a mais evidente delas – entre outros expedientes comuns às realizações desse americano que provou ir além dos êxitos iniciais, construindo uma carreira sólida, feita de filmes calcados em seu conhecimento cinéfilo. O pastiche adquire outra camada de significado, perdendo a conotação pejorativa. Se em Bastardos Inglórios os judeus foram à forra contra Hitler e seus asseclas, aqui os negros escravizados, por meio de Django, têm também um pouco de vingança. Tarantino não corrige a história, mas sim lhe dá cinematograficamente a oportunidade de redimir-se.  


O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS é o filme mais fraco da trilogia que inventaram para levar às telas o livro de Tolkien que bem poderia ser condensado num longa só, talvez com resultado menos dispersivo. Na trama, temos uma série de fatores em jogo: o poder, a superação, a lealdade, a ganância, e tudo isso é abordado com maior ou menor intensidade. Mas Peter Jackson preferiu mesmo as batalhas, aquelas cenas grandiosas que nos filmes da saga O Senhor dos Anéis funcionavam tão bem, mas que em O Hobbit, mais particularmente nesta terceira parte, soam apenas como interlúdios barulhentos e sem muita carga de emoção entre uma passagem dramática e outra. Pela primeira vez os efeitos especiais aparecem meio falsos (talvez pela onipresença), bem como a grandiloquência, antes orgânica, agora apenas um sinal do tamanho da produção. Às vezes, parece um filme dirigido no piloto automático, com brechas até para humor involuntário. Em suma, uma realização bem aquém das demais que visitaram a Terra Média. 



Com a morte de John Hughes, parece que o cinema norte-americano perdeu boa parte da capacidade de falar de e para a juventude. FÉRIAS FRUSTRADAS DE VERÃO, antes mesmo do sucesso Superbad: É Hoje, evidencia que o cineasta Greg Mottola herdou algo do criador de Curtindo a Vida Adoidado, pela forma aparentemente leve, mas com raízes profundas, com a qual aborda desde anseios banais até alguns questionamentos mais sérios de quem transita entre adolescência e vida adulta. Sem poder contar com a ajuda para ingressar na faculdade, o personagem de Jesse Eisenberg vai descobrir no trabalho de verão num parque de diversões boa parte do que precisa para seguir em frente. Lá ele encontra o amor e seus complicadores, a amizade, a decepção, as dificuldades inerentes de sair da proteção dos pais e encarar a vida em todas as suas possibilidades. Mottola faz um filme simples, brincando com estereótipos e clichês, em busca de uma discussão leve, ainda que não superficial, sobre a necessidade de crescer. E, de quebra, uma excelente trilha sonora. 

sábado, 13 de dezembro de 2014

Crise


O que esperar de um primeiro filme? Certa imaturidade e, quando muito, boas ideias. Claro, há sempre as exceções, gente que consegue realizar algo de beleza reconhecível e admirável em meio a insegurança natural da estreia. Crise é o longa inaugural da carreira de Ingmar Bergman, o abre-alas de uma obra inquestionável. Sua história fica entre as intrigas próprias dos folhetins e a busca por uma densidade não vista com frequência. A chegada de Jenny à cidadezinha perdida no interior da Suécia mostra mais que o contraste evidente de sua face calejada (por força da metrópole) e aquela calmaria toda. A mulher de meia idade vem reclamar a maternidade de Nelly, jovem de 18 anos consciente de sua adoção pela professora de piano Ingeborg.

De tal conflito surge uma série de desdobramentos, como era de se esperar. A mãe adotiva se aflige com a iminente perda da filha, menos para a progenitora biológica do que para os encantos da localidade central, repleta de possibilidades e perigos. De início alheia ao turbilhão vindouro, Nelly é cortejada por Ulf, homem mais velho derretido de amores ante sua beleza jovial e, em breve, será tentada pela ideia da mudança e do mesmo modo por Jack, ator desempregado que mantém caso de recíproco usufruto com Jenny. Sim, a trama é mesmo rocambolesca.

Alguns elementos de Crise servem de refresco sem maiores desdobramentos, como a frequência com que Ingeborg pede dinheiro emprestado (e não paga). Já outros, evidenciam a ourivesaria de Bergman. Bom exemplo disso é a insistência da mesma Ingeborg em lançar Nelly aos braços de Ulf, expediente percebido, primeiro como tentativa egoísta de enraizar sua filha na cidade pequena, mas logo e sutilmente (a mãe é também receptiva ao galanteador Jack) elevado à nobre preocupação com o futuro da menina. Bergman trabalha bem as diferenças entre o cotidiano cosmopolita e o dia a dia campesino, ainda que não se atenha com afinco ao embate. O diretor, aliás, e como de costume, está mais preocupado em fazer aflorar sentimentos, ou seja, se volta completamente aos personagens.

Crise não é dos memoráveis filmes de Bergman, mas tal afirmação se configura em tremenda injustiça deliberada do crítico, que o sabe consanguíneo de longas como Gritos e Sussurros, Persona, Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, entre outras tantas pérolas. Verdade seja dita, tirando algumas inconsistências, é muito interessante a dinâmica do crescimento afetivo e emocional de Nelly, partida uma e regressa outra. Nessa figura, dividida entre a mãe e o futuro na capital, podemos, com boa vontade, ver embrião da libertária Monika, protagonista de Monika e o Desejo, pois, de maneira semelhante, ela quer expandir-se para além dos grilhões impostos socialmente (comportamento pouco atribuído às mulheres da época). E como não evocar Charlotte e Eva, de Sonata de Outono¸ quando vemos a mãe ao piano? Ligações (provavelmente forçadas) à parte, Crise vale o quanto pesa sozinho.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Doses Homeopáticas #33


JOGOS VORAZES: A ESPERANÇA PARTE 1 padece de um problema causado por sua concepção mercantil. Não li o original literário no qual a trama se baseia, mas a divisão o último livro da série em dois filmes – claramente uma decisão de mercado, apoiada em experiências anteriores que deram certo financeiramente – faz com que este apenas impulsione o fechamento que virá a seguir, levantando uma série de questões que (espero) serão aprofundadas na sequência direta. Ainda assim, é um entretenimento muito longe da banalidade, que expõe – às vezes de maneira um tanto ingênua, noutras com muita inteligência – tanto os mecanismos que regem os governos totalitários quanto as engrenagens das uniões rebeldes. Não basta ser valente, lutar por um ideal, é necessário parecer, e nisso o personagem de Philip Seymour Hoffman é emblemático, pois à frente do marketing que visa criar um mito encorajador, o Tordo que liderará as massas contra os desmandos da Capital. Mesmo tropeçando, a série continua no bom caminho.


Assim como em O Guia Pervertido do Cinema, o filósofo/teórico/crítico social esloveno Slavoj Žižek dá em O GUIA PERVERTIDO DA IDEOLOGIA uma verdadeira aula de minuciosa decodificação dos processos ideológicos, tendo como referência fundamental o cinema. Ele passeia por cenários de filmes de Martin Scorsese, John Frankenheimer, James Cameron, entre outros, para expor mensagens por trás das ideias superficiais do cinema. Assim, é muito interessante, por exemplo, a análise do que é absorvido geralmente como evidência da luta de classes em Titanic, mas que, segundo ele, não passa da reafirmação da soberania burguesa. Žižek também toma como base de sua explanação, de sua verborragia impressionante, os regimes fascistas, fazendo relações entre os mesmos e os mecanismos capitalistas. A religião também é questionada, assim como a própria ideia de ateísmo. O GUIA PERVERTIDO DA IDEOLOGIA é mais uma amostra do porquê Žižek ser considerado um dos grandes pensadores da atualidade.



SÉTIMO até começa bem. A ideia do sumiço das crianças no percurso escada abaixo do prédio onde moram, enquanto o pai desce pelo elevador, é bem interessante e propõe uma busca fisicamente retida naquele espaço específico. Contudo, ao passo que se desenvolve, o filme do diretor Patxi Amezuca vai perdendo o pouco fôlego que tinha inicialmente, sobretudo por conta do roteiro que aposta demais numa dinâmica que logo se vicia: surge um novo suspeito; descarta-se o novo suspeito. Não há, em princípio, nada de errado com o procedimento, desde que se mantenha um pouco de tensão entre uma desconfiança e outra. Ricardo Darín não consegue salvar o próprio personagem – tampouco o filme em sua totalidade – de um esquematismo incômodo. Há referências visuais que soam como pistas, mas que não dão em nada, como as constantes tomadas que contrapõem escadas espiraladas e elevadores.  SÉTIMO caminha a passos largos para o fim decepcionante que de fato vem. Aliás, decepcionante não, pois o próprio rumar trôpego já dava a ideia de que aquilo não poderia acabar bem.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Instinto Materno


Não é de hoje que o cinema romeno se destaca no cenário das produções europeias. Particularmente, uma geração recente de artistas parece empenhada em acertar contas com o passado, expondo heranças que a ditadura Ceausescu legou ao povo. Filmes de tons muito diferentes como 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias e A Leste de Bucareste, por exemplo, apresentam, cada qual à sua maneira, uma vontade latente de entender a Romênia de outrora que, ainda hoje, se vê presa a velhos fantasmas. Instinto Materno é, a princípio, um filme sobre a obsessão de Cornelia (Luminita Gheorghiu) pelo filho de 32 anos, Barbu (Bogdan Dumitrache), a quem ainda trata como criança desamparada e dependente de seus cuidados constantes. Mas essa relação expõe algumas fraturas sociais alusivas ao todo, ou seja, vai do micro ao macro.

A mulher que seduz a empregada para dela tirar informações a respeito de trivialidades, tais como a arrumação da casa do filho e outros insumos de críticas dirigidas à nora (vista inevitavelmente enquanto rival), é também capaz de tudo que estiver ao alcance para minimizar a punição ao mesmo filho que logo vai matar por atropelamento um menino de 14 anos. Na delegacia, confronta autoridades, alheia à dor da família que chora a perda definitiva de um ente querido. Cornelia só quer salvar Barbu, mesmo que para isso precise adulterar depoimentos e comprar a ética do outro. Aliás, a polícia que no calor do momento se mostra arredia à arbitrariedade da senhora de alta classe, em menos de 24 horas aparece “domesticada” por sua teia de contatos nas mais altas esferas, e, mais ainda, dispondo disso para proveito próprio.

O cineasta Calin Peter Netzer mantém esteticamente o itinerário do cinema romeno contemporâneo, ou seja, câmera na mão e situações apresentadas de maneira seca, sem floreios visuais. A pegada social não se dá como que impressa num panfleto, surge nas entrelinhas, menos no puro contraponto da vida burguesa com a massa desamparada, e mais no poder dos abastados que, invariavelmente, serve para alargar ainda mais o abismo existente entre seus direitos/deveres e os equivalentes da camada menos favorecida. Cornelia, então, de alguma maneira representa o Estado obcecado por controlar a vida de seus “filhos”, estes cada vez mais acuados diante de desmandos travestidos de cuidado, de atenção. Mesmo nas cenas de emoção, Netzer ressalta o calculismo dessa protagonista preocupada com seu lado, ou, quando muito, em abrandar o peso da própria consciência.

A jornada da mãe em busca da salvação do filho se confunde com a própria necessidade que ela tem de sentir-se no domínio, onipotente diante de qualquer adversidade. Aliás, o controle lhe é muito caro, parte indissociável tanto de sua classe social, quanto da própria índole por ela moldada. Quando Barbu diz ser necessário a geração da mãe desaparecer, não se refere apenas a rusgas num nível íntimo, mas à mentalidade que subjuga fracos para manter-se hegemônica.  Instinto Materno faz da dinâmica entre mãe e filho um exemplo vivo da necessidade de impor limites aos dominadores, isso se quisermos igualdade e liberdade.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

TOP5 - Personagens Neuróticos

A coluna TOP5 está de volta. Nesta edição, a psicóloga e psicanalista (além de amiga) Ana Lucia Gondim Bastos apresenta cinco personagens neuróticos do cinema. Mas, antes da lista propriamente dita, é bom esclarecer o que de fato é uma neurose. Para isso, a fim de que não fiquemos reféns do uso comum (muitas vezes errado) da expressão, pedi à Ana Lucia que fizesse uma introdução sobre o tema. Confira. 
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A consistência na construção de um personagem depende, em grande parte, da coerência entre sua organização psíquica (ou a falta dela) e sua inserção na trama proposta pelo roteiro. A psicanálise apresenta um modelo de aparelho psíquico que, segundo particular organização e flexibilidade, oferece à pessoa (ou ao personagem) em questão determinadas possibilidades de lidar com seus conflitos e de dar conta das constantes (e dialógicas) demandas recebidas, tanto do mundo interno quanto do mundo externo. As neuroses são manifestações dessas possibilidades (ou impossibilidades), assim como as psicoses ou as perversões. Numa organização neurótica, falando bem grosso modo, existe um conflito grande entre desejos e fantasias inconscientes e a censura, do próprio sujeito, em relação a tais fantasias e desejos, o que o faz lançar mão de diversos mecanismos de defesa para dar conta das ambivalências e incoerências provenientes desse conflito. Vamos, então, à minha seleção de personagens neuróticos: 

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O médico Bill Harford, personagem de Tom Cruise em De Olhos Bem Fechados (1999), último filme de Stanley Kubrick. Depois de uma festa de um paciente milionário, ele e sua esposa (papel de Nicole Kidman), ainda no clima festivo e do “sem limites para a fantasia” da vida dos ricaços, conversam sobre fantasias sexuais. Isso mexe com os mecanismos de defesa do médico que passa a ter pensamentos recorrentes e incontroláveis sobre o diálogo e a buscar dar vazão a desejos sexuais até então recalcados. Incrível trama sobre a neurose às portas da perversão. 



O romancista nova-iorquino Melvin Udall, personagem de Jack Nicholson em Melhor é Impossível (James Brook, 1997), comédia romântica que tem como mote a própria neurose do protagonista. Os exageros, quase caricaturais, e a rigidez, metódica e intolerante, característicos da neurose obsessiva do personagem é a linha que costura toda a trama que ele protagoniza. Quando o isolamento que o protege do outro começa a ser ameaçado, Melvin vê seu mundo, cheio de certezas, se desorganizar, abrindo espaço para as relações humanas. 


A rica dona de casa, também nova-iorquina, Alice Tate, personagem de Mia Farrow em Simplesmente Alice (1990), filme de Wood Allen. Casada, com filhos e sem preocupações financeiras, Alice se interessa por um músico, pai de um colega de escola de sua filha. Tal interesse abala as certezas de que está tudo bem em seu cotidiano entediante, fútil e sem maiores preocupações e, por isso, ela acaba recorrendo a um chinês que a leva para uma experiência mística, através da qual tira “o véu” que encobria suas relações e a empodera para transformar e, finalmente, protagonizar uma história. 



Roberto, o mal-humorado dono de uma pequena loja de ferragens, personagem de Ricardo Darín em Um Conto Chinês (filme de Sebastián Borensztein, 2011). Ex-combatente de guerra, Roberto mantém uma vida marcada pela irritabilidade e o isolamento. No seu restrito e metódico cotidiano, tem como forma de diversão selecionar e recortar notícias de jornais com acontecimentos inusitados. Contudo, quando o inusitado acontece em sua vida – um imigrante chinês “cai em seu colo” e torna-se parte desse seu cotidiano – Roberto vê sua falta de flexibilidade colocada em xeque. 



Cabíria, a simpática e desajeitada prostituta, personagem de Giulieta Masina em Noites de Cabíria (Federico Fellini, 1957). Imersa na idealização de uma vida sem as privações que sua realidade impõe, Cabíria está sempre entrando em enrascadas e se frustrando, enquanto projeta suas fantasias românticas num cotidiano árido e pouco acolhedor.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

NÔMADES levantando a (o) POEIRA


Em cena, três atrizes e uma ausência.
O espetáculo Nômades, em cartaz no Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104 - Botafogo, Rio de Janeiro – RJ), protagonizado por Andréa Beltrão, Malu Galli e Mariana Lima, fala, entre outras coisas, sobre vida e morte. Se por um lado há a dor da perda, por outro há a alegria da criação, da recriação, numa alternância natural ao fluxo da existência. Tristeza não tem fim, felicidade sim. Mas será que mesmo a felicidade é refém da finitude? As atrizes, em pleno exercício de sua vocação, não estariam driblando os ditames da própria morte, transcendendo o padecer da carne, atingindo uma espécie de imortalidade que se desprende do fazer arte e se fragmenta de maneira distinta em cada espectador?   

Para mais a respeito de Nômades, abaixo o texto da amiga Bianca Siqueira, ela que também faz da arte não só um meio de vida, mas de perpetuação da vida.

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Ficha Técnica
Comédia, Drama, Musical
Dramaturgia: Marcio Abreu e Patrick Pessoa
com colaboração de Andréa Beltrão, Malu Galli, Mariana Lima e Newton Moreno. 

Texto e cena criados simultaneamente.

Concepção e Direção: MARCIO ABREU
Elenco: ANDRÉA BELTRÃO, MALU GALLI, MARIANA LIMA
Direção de movimento: MARCIA RUBIN
Cenário e objetos: FERNANDO MARÉS
Iluminação: NADJA NAIRA
Figurinos: CAO ALBUQUERQUE E NATALIA DURAN
Direção Musical: FILIPE STORINO
Visagismo: LU MORAES
Direção de Produção: JOSÉ LUIZ COUTINHO E WAGNER PACHECO

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Vida que pulsa; vida que pensa...O GRUPO de artistas que desenvolveu a experiência; Nômades; propõe intensidades através da ARTE pela comunhão de Almas criativas. Experimentamos sem sair do lugar um mergulho na psique. Visitamos suas fronteiras entre tormentas, paixões, amizades, realizações... Mais que um espetáculo, nos deparamos com a proposta do resgate humano que suspira entre o sensível e o lógico. Usufruímos da poesia, filosofia, música, dança e cenas teatrais maravilhosas, divertidíssimas. O desprendimento artístico que se revela em “personagens” é de uma liberdade, de uma verdade... que muito poucos estão dispostos ( ao contrário do que investiga a atriz quando verbaliza a respeito da subjetividade e possibilidades do artista) ! Estes artistas mergulham fundo na experiência do não ser. Desestabilizam (desenquadram) personagens com os quais, ao longo da vida, nos identificamos pela linguagem, códigos sociais, relações interpessoais, textos teatrais etc. e que, a partir dos padrões sociais, se formalizam como cultura (identidade).  

O desafio do artista, aqui, se dá pela derrubada de velha cultura dos critérios, modismos ou valores empoeirados e, por isso mesmo, não caberia a representação destes. Fiquei emocionada com o fazer artístico tão revolucionário e com tanta qualidade cênica. Nômades permitiu-me o embaralhar das idéias costumeiras que se estruturam no ego e na fama. A ARTE que ali se alimenta não pretende a cultura dos mesmos, dos “iguais”, dos textos clássicos, do comércio vazio das apresentações artísticas, tão somente... Não que o clássico seja ruim. Tem seu valor. Mas o artista aqui quer seu quinhão de humanidade e compartilhamento desta. O meu ingresso nesta casa empoeirada pelas reflexões emblemáticas foi totalmente inusitado. Pude ser vasculhada por inteiro e sumir da condição de público tiete. Mesmo adorando e querendo muito parabenizar a todos e todas o presente que ganhei foi ainda maior. Senti-me revigorada para além de qualquer condição. E atesto, neste espaço, que pude compartilhar desta proposta onde a ARTE foi maior que seu intérprete. Obrigada.

Por Bianca Siqueira

domingo, 23 de novembro de 2014

Doses Homeopáticas #32


O QUE SE MOVE aborda perda, mas não uma do tipo qualquer. Feito de três histórias distintas nas quais mães perdem seus filhos, o filme de Cateano Gotardo trabalha com o mínimo, apostando numa encenação próxima do cotidiano, ainda que algumas interpretações sejam demasiado empostadas. Nada que nos tire a sensação de estar entre gente de verdade. Contudo, no fim de cada segmento as mães literalmente cantam sua dor, ou seja, há uma quebra nesse pacto com a encenação minimamente artificial, uma vez que o musical é um gênero antinatural por excelência. Ainda que seja tudo muito bem trabalhado, que as emoções soem genuínas até certo ponto, não me parece que o filme consegue se desvencilhar de um distanciamento que minimiza o impacto tanto dos eventos trágicos quanto do sofrimento que as mães – com muita beleza, é verdade – cantam, expressando o que as palavras não mais comportam sozinhas carregar.


A jornada que INTERESTELAR nos propõe não é apenas a exploratória, aquela na qual os personagens precisam atravessar o cosmos em busca de outro planeta habitável, uma vez que a Terra sucumbe definitivamente a anos de descaso. Primeiro temos o drama familiar, a difícil decisão do personagem de Matthew McConaughey (aliás, ele em outra grande atuação) de deixar para trás os seus em prol da humanidade. No espaço as coisas se complicam, as pessoas têm de se submeter a ditames desconhecidos, dimensões que lhes fogem, lidar com a relatividade do tempo. Dolorosa a cena em que o protagonista regresso de uma missão rápida, porém malfadada e que lhe custa muitos anos, vê mensagens que resumem em minutos os acontecimentos de quase uma vida. Dali para adiante, tudo fica mais complexo, pois Christopher Nolan mostra o quão ignorantes somos em relação àquilo que escapa de nossas fronteiras (metafóricas ou não), ao passo que celebra a força do humano e dos laços que ele cria para subsistir.


HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO se debruça sobre problemas típicos da adolescência. Nele, vemos jovens tentando crescer, se desvencilhar da superproteção paterna, descobrindo o amor, o desejo, enfim expedientes pelos quais todos nós passamos. Porém, para Leonardo, o protagonista, as coisas são um pouco mais difíceis, afinal de contas ele é cego. As rédeas dos pais são ainda mais curtas – sobretudo as da mãe –, a melhor amiga, claramente apaixonada por ele, se distancia enciumada de Gabriel, colega novo que, sem querer, acaba desestabilizando as coisas. Leonardo e Gabriel se aproximam e o afeto se desdobra em paixão. Daniel Ribeiro, o diretor, conduz tudo com muita suavidade, sem forçar a barra nos percalços pelos quais esses adolescentes passam. O filme tem o grande mérito de ser artisticamente relevante, pois voltado com muita sensibilidade a questões humanas, sem precisar alardear as próprias qualidades. É nessa aparente simplicidade que reside a força essencial do brasileiro postulante ao Oscar.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Um Dia a Casa Cai


Quem casa, quer casa. A velha máxima se aplica a Walter Fielding (Tom Hanks) e Anna Crowley (Shelley Long), em Um Dia a Casa Cai (1986). Desalojados às pressas do apartamento onde moravam, precisam encontrar lugar novo para viver. Em Nova Iorque isso poderia demorar meses, mas eles logo topam com uma propriedade afastada da metrópole, cujo valor irrisório é incompatível com a imponência do imóvel. Atraídos pelo negócio de ocasião, compram a casa quase literalmente às cegas, e não tardam a entender o porquê da bagatela. Ela é quase uma corporificação da Lei de Murphy, pois se algo tem a possibilidade de dar errado, vai dar. Abrir uma torneira ou fazer o café da manhã pode (e terá) consequências catastróficas, afinal de contas a casa está podre, caindo aos pedaços, do encanamento às paredes, da instalação elétrica ao telhado.

Um Dia a Casa Cai traz ao menos três nomes de peso em sua equipe: Tom Hanks, antes da consagração figurinha carimbada das boas comédias americanas oitentistas; Steven Spielberg, então na produção; e Gordon Willis, conhecido como “O Príncipe da Escuridão”, responsável também pela fotografia de, por exemplo, O Poderoso Chefão e Manhattan. A trama segue o tom cômico na maior parte das vezes, com as desventuras do casal em busca de dinheiro e sanidade mental para levar adiante a reforma da casa, isso ao passo em que o ex-marido dela, maestro famoso e egocêntrico, volta a investir para reaver a conquista perdida. O personagem de Hanks é um advogado ligado à indústria musical, cujo namoro se torna vítima de infiltrações semelhantes às do “queijo suíço” que ele ainda teima em chamar de lar.

O grande trunfo de Um Dia a Casa Cai é não se levar a sério demais, com uma que outra boa observação mais solene sobre relacionamentos. A casa em reforma serve de metáfora do namoro de Walter e Anna, mas não é por esse fiapo de “profundidade” que o filme vale, e sim por buscar nossa diversão a todo instante. Difícil conter a gargalhada (ou sorriso, vá lá) quando meras tarefas diárias desencadeiam efeitos borboletas de proporções nefastas na vida, sobretudo, de Walter, alguém que apenas está querendo fazer a coisa certa, ser um homem direito, mas que acaba vítima do imponderável. Hoje em dia, Tom Hanks ocupa outro espaço no panteão hollywoodiano, pois um de seus habitantes mais respeitáveis, entretanto como seria bom vê-lo novamente explorando a veia cômica num filme próximo àqueles que o fizeram célebre no início da carreira.

Somos levados em Um Dia a Casa Cai a rir sem culpa da desgraça alheia, dos problemas de Walter e Anna, estes empilhados visivelmente em forma de entulho. Claro, quando o namoro deles passa por uma turbulência, ansiamos pelo famigerado happy ending, ou seja, somos sensíveis aos problemas do coração, porém alheios aos equivalentes residenciais. Queremos mais é que a reforma se arraste, que Tom Hanks continue vítima da casa, caindo nas armadilhas, descobrindo novos defeitos à custa da sua integridade física, isso por que a relação dos personagens com o cenário principal soa quase cartunesca. Quando entra a “vida real”, aí nos solidarizamos. Mas o que define mesmo Um Dia a Casa Cai é a diversão quase sádica proporcionada, afinal de contas, enquanto Walter luta quixotescamente contra os defeitos da moradia, ficamos deste lado, torcendo egoístas pela próxima emboscada, tudo em prol do riso. Um clássico (me perdoem os puristas) para apreciar repetidas vezes. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 15 de novembro de 2014

CINEMA A DOIS | JIM JARMUSCH – Uma Noite Sobre a Terra (1991)


Em Uma Noite Sobre a Terra, Jim Jarmusch tem como pano de fundo das cinco histórias: o breu da noite, cidades diferentes e conversas inusitadas que acontecem em táxis.

Muito atraente desde a primeira cena, o filme nos leva, de forma leve, a querer saber o que acontecerá com os personagens, todos eles suis generis, como, por exemplo, o taxista estrangeiro perdido nas ruas de Nova Iorque, ou a garota cega, em Paris. Nesse contexto singelo e muito interessante, Jim Jarmusch vai deixando marcas bastante conhecidas, vistas em seus filmes anteriores.

As mini narrativas contam com alta dose de humanidade, paradoxalmente explorada a partir de personagens aparentemente sem muita importância. E é nesse ritmo que vemos uma inversão de papéis entre as duplas. Onde um vive a realidade do outro, sem ser o outro.
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Uma Noite Sobre a Terra é daqueles filmes fragmentados, feito de pequenas histórias aparentemente autônomas e/ou aleatórias, mas que formam um conjunto coeso quando notamos as similaridades. Todas as tramas se passam basicamente dentro de táxis, e começam opondo condutor e passageiro. As interações evidenciam diferenças, mas logo, e de uma maneira bastante orgânica, universos que pareciam até então díspares vão encontrando insuspeitos pontos de conexão. Nesse sentido, talvez a melhor história seja a do motorista alemão (na verdade um palhaço vindo da Alemanha Oriental) que cede o volante (por inabilidade) a um negro que precisa voltar ao Brooklyn.

Também é interessante notar como Jim Jarmusch começa todos os fragmentos descrevendo brevemente entornos feios, desgastados, ruelas escuras e nada convidativas, mesmo quando estamos em Paris ou em Roma, cidades que vêm à nossa mente prioritariamente como destinos turísticos. Aliás, na parte de Roma, até a verborragia acelerada (e por vezes quase insuportável) de Roberto Begnini é muito bem utilizada. O último segmento, passado em Helsinki, é uma óbvia homenagem do americano aos Kaurismäki (os cineastas Aki e Mika), seja por dar o nome deles a dois personagens ou por utilizar como protagonista o ator Matti Pellonpää, colaborador frequente de Aki.


Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Rápida e Mortal


Filmar western em pleno ano de 1995 pôde ser considerado, além de sinal de resistência, atitude fetichista. Sam Raimi, então um diretor de afamada carreira no cinema mais ligado ao terror, incursiona pelo oeste selvagem resgatando esse gênero que tanto contribuiu não apenas para a consolidação dos EUA como potência cinematográfica, mas para a própria linguagem do cinema. Sabe-se lá por que, o público passou a não mais responder nas bilheterias aos chamados vindos das pradarias, dos ranchos, dos valorosos e crápulas pistoleiros apresentados na tela.  Ou seja, trazer de volta o western sabendo do provável fracasso nas bilheterias é, além de declaração de amor, por que não, um ato político.

A coragem de Raimi se afirma na confiança do protagonismo a uma mulher. Em território historicamente dominado por homens, no qual a mulher ou era submissa esposa ou prostituta, surge cavalgando no horizonte a bela Ellen (Sharon Stone). Vestida tal cowboy¸ arma no coldre, chapéu e aquele olhar ferino tipo “Estranho Sem Nome”, ela chega até a cidade Redemption em busca da boa e velha vingança, tema abundante num período em que 09 entre 10 pessoas carregavam armas nas ruas e, não raro, davam vazão à raiva metendo bala na cabeça de alguém. No caso de Ellen, a desforra tem razões mais sombrias e remonta ao assassinato do pai, então Xerife, pelo bando de John Herod (Gene Hackman) que, claro, ela encontrará na cidadela com nome de premonição.

Herod promove na ocasião um torneio de tiro, onde viver é sinal de vitória. Ele traz forçosamente o velho parceiro Cort (Russel Crowe) para a peleja, tirando-o da vida dedicada às pregações religiosas para lembrá-lo de seu passado assassino. Cort, rápido e letal, será espécie de suporte psicológico a Ellen. Além da vingança, outro tema trabalhado em Rápida e Mortal é a relação pai/filho, uma vez que Herod terá como oponente seu próprio filho Fee “The Kid” (Leonardo Di Caprio), jovem ávido para provar ao pai seu valor, nem que para isso precise matá-lo em duelo.

Raimi cozinha esse assado numa panela repleta de referências, sendo a principal delas o italiano Sérgio Leone, ícone do chamado spaghetti western. Entre filiar-se à tradição estadunidense e seguir a maior dramaticidade do bangue-bangue europeu, o diretor envereda visualmente pela segunda, muito mais próxima de seu itinerário estilístico repleto de ângulos insólitos e tipos marcados. Mas Raimi não se propõe ao pastiche, dotando Rápida e Mortal de identidade própria e carimbo com sua assinatura contumaz. Quiçá o problema (se isso for problema) maior do filme resida no eclipse da protagonista por dois personagens tão ou mais fortes que ela própria: Herod e Cort. Algo a ver com as interpretações contundentes de Gene Hackman e Russel Crowe, frente à burocrática Sharon Stone? Pode ser.

Independente dessas questões, Rápida e Mortal é um filme de brios, empolgante e cheio de energia. Se não trouxe nada de novo para o gênero, o resgatou dignamente do limbo. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 9 de novembro de 2014

O Estranho Caso de Angélica


O tempo é o alicerce principal do cineasta Manoel de Oliveira para a construção de O Estranho Caso de Angélica. Ironia, ou não, Manoel é quase tão longevo quanto o próprio cinema (tem 104 anos), então ninguém mais capaz de uma reflexão como esta, onde a finitude espreita a vida como se dela fosse parceria íntima, pronta para roubar-lhe a vez. Na trama, o jovem fotógrafo português/judeu Isaac (Ricardo Trêpa) é chamado no decorrer da madrugada para fotografar a filha de uma família importante, que jaz morta após acidente. Ao observar a falecida pela câmera, o insólito acontece: Angélica (Pilar López de Ayala) abre os olhos e lhe sorri. Através da lente surge mágica, o improvável se contradiz e a ideia de morte é posta em xeque. Bela maneira de aludir ao poder do cinema.

Como era de se esperar, Isaac fica transtornado e logo cai numa obsessão sem volta pela desconhecida, cujo sorriso pós-morte lhe trouxe algo que, em vida, provavelmente nenhum outro conseguiu. Seu registro da labuta diária dos trabalhadores braçais, contrapostos à modernidade e suas máquinas de desempregar gente, é outro indício de que O Estranho Caso de Angélica reflete sobre o decorrer inexorável do tempo e as consequentes transformações oriundas desse movimento lento, porém constante. Aliás, a própria atmosfera do filme nos desorienta entre passado e presente, pois se na pensão e na própria Quinta onde o protagonista fotografa Angélica – local que deixa ver na fachada os sinais do tempo (novamente ele) – se respira algo do passado, relances outros nos trazem irremediavelmente o presente, incluindo aí as preocupações contemporâneas reveladas durante conversa entre intelectuais.

A vida de Isaac passa a gravitar em torno de Angélica, aquela de nome alusivo aos anjos. É como se depois de extasiar-se frente ao desconhecido e, por que não, ao amor, o fotógrafo passasse o restante do filme se preparando para seguir caminho então definido, aliás, o único possível para aproximá-lo verdadeiramente da amada. Sendo assim, o controle sobre sua cronologia, de alguma maneira poder de vida e morte, no fim das contas faz dele senhor da própria vontade, mesmo que pareça refém de uma paixão infundada no mais das vezes. O longa tateia bravamente o metafísico quando os sonhos absurdos ganham corpo (ou espírito) real dentro da diegese.

O Estranho Caso de Angélica é filme difícil de classificar, não atende convenções. Por exemplo, a imobilidade dos coadjuvantes no desenrolar de determinadas cenas, prato cheio para deflagrar uma “teatralidade” incômoda, sob a regência de Manoel torna-se artifício de grande expressividade, soa como parte indissociável do contexto, não elemento deslocado.  Essa “naturalidade” também se aplica ao fantástico, integrado organicamente à trama. Em dias de entretenimento ligeiro e completamente esquecível, cortados, vez ou outra, por exceções animadoras, O Estranho Caso de Angélica é, além disso, fruto de outro tempo, de alguém que faz hoje o grande cinema de outrora. A jovialidade artística de Manoel de Oliveira, atributo sem igual, é um paradoxo e tanto.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Doses Homeopáticas #31


Uma das cenas-chave de TOURO INDOMÁVEL, essa obra-prima de Martin Scorsese - agora devidamente vista em tela grande -, é aquela em que o boxeador Jake La Mota, preso, vítima de si mesmo, do comportamento irascível que faz a hostilidade dos ringues vazar para a vida cotidiana, tornando-o um cara essencialmente agressivo (talvez como resposta ao mundo que não lhe deu nada além de porrada), grita aos prantos: “eu não sou um animal, eu não sou um animal”. Ali, “O Touro do Bronx” clama que lhe tratem como gente, pede para verem nele mais do que aquele lutador incansável e orgulhoso de nunca ter caído. Paradoxo vivo, pois ele próprio não dá qualquer abertura para que percebam além de sua revolta materializada na violência, esta reação desferida com a mesma naturalidade contra adversários, esposas, o irmão, a máfia que cresce o olho sobre seu talento, enfim, contra todos que cruzam seu caminho. Não sei se TOURO INDOMÁVEL é o melhor filme de Scorsese, afinal ainda há Táxi Driver, Os Bons Companheiros, entre outros barras-pesadas nessa parada, mas que se trata de um grande filme, disso não há qualquer dúvida.


FOOTLOOSE é um dos meus filmes favoritos dos anos 1980. Claro, coloque aí um pouco de memória afetiva, afinal de contas ele está na base da minha formação cinéfila, pois exibido muitas vezes nas Sessões da Tarde que me mantinham frente à televisão na infância. Contudo, o longa protagonizado por Kevin Bacon envelheceu muito bem, mantendo intacta e de certa forma atual a mensagem de transgressão contida na trama do novato que precisa lutar contra uma comunidade tacanha pelo simples direito de dançar e se divertir. Há muito de Juventude Transviada em FOOTLOOSE, homenagem que fica clara na similaridade dos motes, bem como na importância conferida em ambos os longas à amizade do protagonistas com alguém também meio escanteado. Até mesmo o duelo de tratores no filme de Herbert Ross presta tributo ao duelo automotivo do clássico de Nicholas Ray. Paralelos à parte, FOOTLOOSE tem, ainda, uma baita trilha sonora, feita de famosas músicas oitentistas, daquelas que a gente fica cantarolando depois. Um filme que, particularmente, não canso de rever.



Difícil pra caramba fazer um filme episódico que não soe, no mínimo, desequilibrado, e no qual haja algo realmente genuíno ligando os segmentos. São justamente essas as proezas maiores de RELATOS SELVAGENS, uma ótima realização argentina (outra delas) que aborda vinganças com muito bom humor. A primeira parte, a do avião, já é uma grande sacada, pois nos ilude com o que, em princípio, se entende como coincidência extremamente inverossímil, mas que depois se mostra justo a força por trás de uma vendeta inapelável. Dali em diante os personagens acertarão as contas com desafetos de trânsito, com a burocracia argentina, com o cônjuge traidor, com o agiota que arruinou a vida familiar, sempre com requintes de crueldade e arrancando risadas da plateia. Mesclar violência e humor dessa maneira é perigoso, pois tal mistura tende a ser implosiva. Tá aí outra arapuca da qual RELATO SELVAGENS escapa com louvor. Os hermanos provam, mais uma vez, quem manda cinematograficamente no cenário latino-americano.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Possessão


Política, desejo, ciúme, obsessão, são alguns dos pilares de Possessão (1981), dirigido pelo polonês Andrzej Zulawski. Muito do impacto causado surge, para além do conteúdo repleto de mensagens cifradas, dos artifícios que trazem ao exterior as complexas sensações dos personagens. A linguagem de Zulawski é seca, quebradiça, elíptica, não apenas para desestabilizar o espectador que segue o desenrolar da trama num misto de interesse e perplexidade, mas também como alusão ao fim da Guerra Fria, período responsável por tornar política e socialmente instável toda a Europa.

Mark (Sam Neill) acaba de voltar para casa, desliga-se do trabalho (provavelmente algo relacionado à polícia ou espionagem) para se dedicar à família. Encontra a esposa Anna (Isabelle Adjani) descontente, e não tarda a descobrir sua infidelidade, com isso iniciando doloroso processo de desintegração do casamento. Obsessivo, o homem inicia um jogo no qual o filho de ambos é peça-chave. Para visitar Bob (a criança) a mãe precisará continuar vendo também o pai amargurado. Dessa relação baseada na chantagem emocional, surgem pequenas e depois grandes violências, começando pelas psicológicas e culminando em agressões físicas. Do lado de cá, somos tragados pela atmosfera construída por Zulawski, pulamos de cena em cena, somos arrastados pelos travelings e nosso olhar é guiado direto à fraturada psique dos personagens.     

Se no início percebemos Mark com elo frágil do rompimento, a parte com menos estrutura para segurar o tranco da separação, gradativamente Anna apresenta sinais de maior proporção à psicose desenvolvida pelo ex-marido. Zulawski extrai seu filme das bases reais para instaura-lo no campo da alegoria com o surgimento de uma criatura inumana, novo interesse amoroso/sexual da personagem de Adjani. Podemos entender tal ser disforme e ávido por sangue como a materialização da patologia mental que tira Anna completamente do prumo, fazendo-a, inclusive, assassina. Os reveses de humor, o retorno para arrumar a antiga casa sob o pretexto de ver o filho - por quem nunca espera de verdade -, a cada vez mais doente relação com Mark - ele mesmo em permanente estado de desorientação -, fazem de Anna (figura mais complexa do longa) tanto vítima quanto algoz de si.  

Em Possessão é complicado diferenciar objetividade de subjetividade. Há indícios muito frágeis de quando (se é que) estamos na realidade ou na lógica distorcida dos personagens.  À medida que o filme se entrega totalmente aos ditames da loucura, Deus e o embate entre destino e aleatoriedade passam a ser citados, assim como as esferas intangíveis e carnais formadoras do humano. Aliás, pensamento e carne nunca se dissociam em Possessão, enquanto um padece, a outra sangra.

Confesso ter me entediado, vez ou outra, com a reiteração de certos ideais, a aposta no alongamento das exposições (ainda que a duração das mesmas seja disfarçada pelos cortes abruptos), em detrimento da concisão. Por outro lado, o filme soar descontrolado, inquieto, lhe faz muito bem. De qualquer maneira, senti como se minha leitura fosse em parte prejudicada por uma abundância de importantes signos referenciais que me escaparam. Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa. Assumir isso não é demérito algum, ainda mais frente à evidente força de um objeto cinematográfico não identificado destes, onde somos convidados irremediavelmente às profundezas da demência alheia.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Doses Homeopáticas #30


CHEF é um arroz com feijão bem temperado. Conhecemos o percurso do cara que afunda no ego, que deixa o próprio talento e a obsessão pelo trabalho cegá-lo quanto às outras coisas importantes da vida, e que logo vai ter de começar de novo. Mas aqui, além do diretor John Favreau fazer um filme que pega a gente pelo estômago – e dá uma fome danada ver o preparo dos pratos -, há um acerto de contas que desloca ligeiramente o mais óbvio, ou seja, a frustração pessoal que logo se transforma num novo sucesso, direcionando o filme à reconciliação familiar na viagem pelos EUA que fará, finalmente, pai conhecer filho e vice-versa. Tudo caminha para um final feliz, como manda o figurino. Fica a sensação de provar um prato caseiro, que a gente já comeu diversas vezes, mas ao qual sempre volta, porque além de familiar, o gosto é bom.


Saí da sessão de A PEDRA DE PACIÊNCIA com a sensação de ter visto algo muito forte do ponto de vista cinematográfico. A protagonista encara praticamente sozinha a dureza do dia a dia de bombardeios e a criação das filhas, já que o marido está quase em estado vegetativo após levar um tiro. A partir de seus relatos para esse ouvinte imóvel, que involuntariamente assume papel de confessor ou analista, a gente passa a entender melhor a opressão da mulher muçulmana, já que temos exemplificadas as convenções sócio-religiosas que institucionalizam sua inferioridade. A encenação se atém ao básico, a fazer da protagonista um símbolo do sofrimento feminino cotidiano no Oriente Médio mais extremista, ainda que conserve a dimensão muito particular de sua história. O homem ali prostrado, quem sabe, representa a inércia fundamentalista, cuja desculpa maior é a tradição. A mulher, pelo contrário, é uma força incontrolável, que burla como pode o sistema cruel para viver com o mínimo de dignidade.


Assim como na maioria dos filmes de David Fincher, em GAROTA EXEMPLAR a investigação principal é apenas uma autoestrada pela qual trafega o comportamento humano em suas mais diversas facetas. Com a habilidade de sempre, o cineasta conduz o inquérito mais como desculpa para deter-se neste ou naquele personagem, para estudar condutas (às vezes extremas) pouco ortodoxas. O marido realmente matou a mulher ou tudo não passa de um mal entendido? Da força dessa incerteza calculada que permeia o filme se incumbe a direção de Fincher, empenhada em ressaltar a ambiguidade dos olhares, dos movimentos, a inflexão suspeita de uma fala qualquer. A violência é muito mais psicológica que gráfica, as instituições são questionadas a todo instante, bem como a verdade, esta que pode tanto ser fabricada por advogados, visando uma boa imagem na televisão, quanto dissimulada no dia a dia para dar a (falsa) impressão de felicidade. Um filme, em última instância, sobre o conflito entre o parecer e o ser.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Fim de Caso


Ninguém sabe ao certo os caminhos da paixão, muito menos quão sinuosos e improváveis eles são. Após encontrar Henry Miles (Stephen Rea), marido de sua ex-amante, vagando desconsolado abaixo de chuva, o escritor Maurice Bendrix (Ralph Fiennes) retoma o contato com ela, Sarah (Julianne Moore), de quem havia se separado há dois anos. Rever o amor perdido é como ter reabertas as feridas até então em processo de cicatrização. Subir as escadas da casa conhecida remete às primeiras carícias, ao sexo feito na clandestinidade onde depois nasceu um sentimento cujo tamanho e força não deixam enquadrá-lo nos habituais “certo” e “errado”. O cineasta Neil Jordan, em Fim de Caso, reafirma o interesse tanto na dualidade humana, quanto na erupção dos desejos, sobretudo os avassaladores que não permitem muita resistência.

O cenário é Londres em plena Segunda Guerra Mundial, cidade sitiada por bombardeios, em permanente tensão. As sirenes que alertam a população para a iminência de ataques aéreos servem inusitadamente ao amor de Bendrix e Sarah. Acompanhamos tudo em retrospectiva, enquanto o escritor datilografa, conforme definição própria, seu “diário de ódio”. Ele não sabe se odeia o marido, a mulher ou a ele mesmo, mas tenta entender e aliviar esse sentimento transpondo-o ao papel. Idas e vindas temporais, reminiscências mesclando-se a acontecimentos presentes, fatos vistos de ângulos diversos, formam uma construção narrativa engenhosa, cujo maior mérito é evidenciar os desvãos que fazem equivalentes a geografia interna dos personagens e a paisagem externa em conflito bélico.

A câmera de Jordan é elegante, passeia por uma Londres antiga, reconstruída minuciosamente para a transposição do livro homônimo de Graham Greene ao cinema. Não bastasse alterar violentamente o ambiente, a Guerra ainda é responsável por algo que influencia de maneira direta e decisiva a trama, dando-lhe contornos ainda mais dramáticos. Promessas precisarão ser cumpridas, sobretudo as feitas a Deus, ainda que o credor onisciente, onipresente e onipotente, seja causa e solução, simultaneamente. Fim de Caso pode soar moralista, pois investe algumas de suas fichas mais altas num diálogo entre fé, milagre, pecado e salvação. Contudo, proponho que percebamos tal exploração como parte de um embate, criado por Greene e reverberado por Jordan, que choca a divindade clássica e seus desígnios, tão misteriosos quanto castradores, com a própria ideia do amor não submetido ao moralismo. Portanto, se Deus é amor, onde há amor, em tese, não há pecado.

O amante, cego de ciúmes, intermedia investigação da qual será conscientemente objeto, à medida que o marido se resigna à dependência da mulher. Sarah, por sua vez, divide-se entre culpa e desejo. Fim de Caso é um filme complexo, onde as pulsões dos personagens aparecem como elementos inerentes à constituição humana, partes indissociáveis de nossa falibilidade primal e irrefreável.  Mediadas pelo amor, ressurreição (simbólica) e cura, a princípio atributos das divindades, podem, como fenômenos perfeitamente instaurados na ordem do real, advir de uma “pecadora”, cuja danação decorre não do adultério, como muitos gostariam de supor, mas da fidelidade quase irrestrita às suas promessas.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Doses Homeopáticas #29


MISSÃO IMPOSSÍVEL: PROTOCOLO FANTASMA está mais para uma aventura típica de Ethan Hunt que para tentativa de alinhamento com, digamos, os novos tempos pós-Bourne. Mas isso, por si, não quer dizer muito, pois não é preciso emular Bourne para ser bom na seara dos filmes de espionagem. Aqui tudo começa muito bem, com aqueles planos truncados, cheios de reviravoltas e segredos típicos das andanças incógnitas do agente secreto pelo mundo. O vilão a ser combatido é um cara que pretende detonar uma guerra nuclear, só isso. Contudo, aos poucos o que parecia legal vai amornando, perdendo força, inclusive visual. A resolução se aproxima ao passo em que já não nos interessa mais tanto. Brad Bird, cria da Pixar em seus primeiro live action, sai-se bem, mas é prejudicado por um roteiro dispersivo e que subaproveita boas ideias.


MISS VIOLENCE tem um pouco dos primeiros filmes de Michael Haneke. Inclusive, no início, antes de suicidar-se, a aniversariante olha para a tela, nos encarando, como faz um dos protagonistas de Violência Gratuita, embora sem o mesmo efeito. O resto do longa é um estudo sobre o que teria levado a garota a se matar. Adentramos no núcleo familiar de maneira íntima, conhecendo aos poucos a rotina que a festividade inicial não deixava transparecer. A encenação é seca, os sentimentos dos personagens parecem represados, isso visto nos semblantes que quase não conseguem mais expressar a dor existente, efeito colateral de um processo de desumanização. Há uma cena de sexo (estupro) aqui, outra mais gráfica ali, mas o que verdadeiramente confere força ao filme é a atmosfera opressiva alcançada pela articulação das coisas num nível sugestivo, menos visual e mais perceptivo.



AMOR À FLOR DA PELE é um daqueles filmes que nos sugerem o amor como fonte de tudo, início e fim não apenas de relacionamentos, mas da nossa própria interação com o mundo. O casal que se julga traído começa a encenar a traição, como se isso, ou seja, de alguma forma entender, lhes reduzisse a dor. No caminho, eles próprios se apaixonam, percebendo que não há como controlar as emoções como se elas fossem documentos tramitando em repartições públicas. A trilha sonora, a palavra que às vezes corrobora e às vezes nega a imagem, a maneira poética de Wong Kar-Wai trabalhar o tempo em prol de uma ligação que se constrói com vagar, a salada cultural de referências (que nem por isso torna a Hong Kong da década de 1960 menos asiática), a ambiência precisa da metrópole convulsionada pela crise dos espaços, são elementos que fazem de AMOR À FLOR DA PELE, quem sabe, o filme mais complexamente romântico das últimas décadas. 

sábado, 11 de outubro de 2014

Santo Forte


Aproveitando a visita do Papa João Paulo II ao Brasil em 1997, e a consequente comoção de tal presença, o cineasta Eduardo Coutinho pôs-se a investigar certos aspectos da religiosidade brasileira em Santo Forte. Para isso, fez um recorte, instalando-se numa pequena comunidade na Gávea, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, para nela identificar, num nível mais evidente, os cruzamentos das doutrinas para a formação complexa das crenças locais, e, nas entrelinhas, o próprio percurso até as religiões, os aspectos sociais e antropológicos que estão na base da relação enraizada, ora na tradição, ora na ocasião, entre pessoas, santos e outros guias de um possível plano mais elevado da existência.

A comunidade é humilde, abriga gente cuja sabedoria tem mais a ver com a vivência do que necessariamente com qualquer experiência nos bancos escolares. Povo sofrido esse que encontra alento nos braços do catolicismo enquanto segue também a doutrina dos orixás. Aliás, o diálogo da fé cristã com as religiões de origem africana perpassa todo Santo Forte. Percebe-se, por exemplo, que as pessoas se dizem católicas, ocultando as práticas no terreiro num primeiro momento, não por medo de discriminação, mas por ficarem realmente entre duas tradições, a brasileira de nascimento e a africana da origem remota, optando comodamente pela mais corriqueira enquanto “oficial”. Como sempre, Eduardo Coutinho não esboça qualquer sinal de julgamento, está ali para fazer emergir complexidades.

Também como de costume, o cineasta expõe a feitura de seu filme, mostrando entrevistados na assinatura de termos de cessão de imagem e deixando a câmera aparecer, ou seja, abolindo de alguma maneira a chamada quarta parede responsável por nos separar daquilo que assistimos, aproximando-nos, assim, do cotidiano alheio, sem traços de invasão. Estamos inequivocamente vendo um filme, onde mesmo o mais sincero dos depoimentos está sob a ordem dos signos cinematográficos. Ligada, a câmera não capta a verdade, mas sim derivados, muito próximos ou muito distantes da dita. Novamente, Coutinho intermedia com habilidade ímpar a relação entre a câmera e o depoente, fazendo deles íntimos.

Santo Forte utiliza as três vertentes religiosas mais disseminadas no Brasil para discutir, a partir do então oportuno momento, a função da crença na vida das pessoas, ainda que não o faça sem certa redundância. Sofredores que encontram na devoção a base para o dia a dia não se importam em batizar os filhos pela manhã com as bênçãos do padre e à noite num cenário repleto de fumaças e das bebidas favoritas dos Pretos Velhos. Tal contradição não lhes incomoda, pois seu pacto é com própria fé com a qual abrandam boa parte da carga cotidiana.


Publicado originalmente no Papo de Cinema