terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Doses Homeopáticas #59


FILME DEMÊNCIA é a descida ao inferno empreendida pelo homem que se depara com a falência do negócio herdado do pai. Livre adaptação de Fausto, de Goethe, o filme de Carlos Reichenbach acompanha o protagonista em andanças desnorteadas, em contato com todo tipo de representante do submundo, transitando por entornos onde a degradação é latente. O povo professa em prosa e verso as injustiças vigentes enquanto este Fausto moderno atravessa São Paulo mirando um oásis que lhe vem em sonho e cuja imagem o persegue durante toda trama, configurando-se numa espécie de ponto a ser alcançado. Carlão realça a condição terceiro-mundista das pessoas e de suas aspirações, ressaltando a importância do sexo por meio dos corpos nus das mulheres que se insinuam ao protagonista. O fluxo é onírico, instância em que matar pode significar libertação, enquanto morrer não é uma opção a quem já vive no fio da navalha. As deambulações de Fausto por prostíbulos de quinta categoria, bares infestados de fracassados, ruelas decrépitas, bem como a companhia de tipos estranhos, evidenciam a vontade de Reichenbach de mesclar o popular e o erudito, pintando com tintas de subdesenvolvimento a escrita original do alemão.


TERRA EM TRANSE é uma alegoria complexa da política terceiro-mundista, com seus personagens trocando de lugar, torcendo a própria ideologia em busca de votos e poder. O poeta apoia o candidato tecnocrata até que ele se eleja senador, depois transfere sua pena à causa do vereador populista que, então, vira um postulante ao cargo de governador. A intenção é abrandar a situação do povo, a miséria que toma conta das camadas menos abastadas da fictícia Eldorado. As forças econômicas são desmascaradas como manipuladoras da conjuntura social, elas que usam políticos como títeres para alcançar seus objetivos. Um magnata da mídia também escancara sua influência, o poder que comumente se intitula de o quarto, mas que pode assumir um protagonismo disfarçado de isenção, no que tange aos destinos da nação. Glauber Rocha fez um filme instigante, no qual a linearidade temporal é abertamente desrespeitada em prol de uma estrutura narrativa signatária do caos que se pretende deflagrar. Essa realização de Glauber é um convulsionado retrato da política brasileira, sobretudo do conturbado período do início dos anos 1960. Obra-prima.



Não há nada de mais em UM SENHOR ESTAGIÁRIO. Um cara resolve voltar a trabalhar depois dos 70 anos, virando estagiário numa empresa moderna, repleta de jovens. Claro que sua presença vai alterar a rotina, servir de contraponto experiente à imaturidade de muitos ali. O que faz o filme ser muito bom, divertido, é a maneira como Robert De Niro interpreta esse cara boa praça, acolhedor, que observa a todos com carinho, sem julgamentos excessivos. Há também méritos no trabalho de direção de Nancy Meyers, especialista neste tipo de filme que, se por um lado, navega em águas calmas, sacolejadas vez ou outra por ventos que sabemos serem passageiros, por outro, não se acovarda de apresentar as falhas e as dificuldades de seus personagens. Embarcamos, assim, nessa nau comandada por Meyers sabendo o tipo de narrativa que nos espera, algo não necessariamente ruim se estivermos em busca de uma história bem contada, protagonizada por gente carismática. Aqui, o estagiário de De Niro serve como uma espécie de anjo da guarda que ajuda a chefe a ser uma pessoa melhor, além de auxiliar os colegas nas mais diversas tarefas (inclusive amorosas) e encontrar, ele próprio, o amor. Cinema que deixa um sorriso no rosto do espectador ao fim da sessão.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Heli


Heli (2013) é o filme pelo qual Amat Escalante ganhou o prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes do ano passado. Já na primeira sequência, a câmera desliza por entre corpos que repousam machucados numa traseira de camionete. Então, nosso olhar é conduzido à estrada e posteriormente ao enforcamento de alguém em plena luz do dia. A mensagem está dada: quem se colocar contra o poder local vigente inevitavelmente se dará mal. Após essa passagem que culmina em morte, encontramos Heli (Armando Espitia) tentando fazer sexo com sua esposa, quando é interrompido por uma funcionária do censo. Desse ponto em diante, a família de Heli, constituída pelo pai, a irmã e o filho recém-nascido, será o núcleo de onde partirão as observações do filme, sejam elas a respeito da natureza das pessoas ou mesmo sobre a violência que predomina em certas localidades mexicanas.

Sem estudo e oportunidades suficientes para subir na vida, a Heli só resta seguir os passos do pai, trabalhando numa montadora automobilística, mesmo porque o lugarejo não oferece muitas opções. Trabalhador braçal, policial ou traficante, são essas as trajetórias mais evidentes. Estela (Andrea Vergara), a irmã do protagonista, namora com um recruta mais velho. Noutra cena em que o sexo não se consuma, ela impede que a mão do pretendente passe acima da linha da coxa, o que o deixa frustrado. A menina tem medo, engravidar assim tão nova está fora de cogitação. Apaixonado, esse rapaz que sofre humilhações cotidianas nos treinamentos militares sai em busca de alternativas para, então, casar com sua amada. Decide roubar drogas sabe-se lá de quem para viabilizar a união. Mas, dinheiro fácil nunca é fácil.

A potência da imagem em Heli é preponderante. De início, a violência crua e inclemente nos situa no território de aridez (inclusive emocional) que abriga os personagens. Logo, porém, o registro visual pende ao idílico, pois a fotografia é cuidadosamente construída numa dimensão poética. O artifício não chega a “embelezar” os acontecimentos, pois à câmera parece importante registrar a miséria a seu modo, sem nunca torna-la espetacular. Estranhamente, num terceiro momento a imagem volta a captar a violência de frente, só que desta vez em seu aspecto ordinário, quase pornográfico. O discurso é esvaziado justo por apoiar-se demasiado em determinados atos de tortura, como se eles, assim vistos, fossem imprescindíveis para dotar de relevância o discurso anterior bem como o do porvir.

Daí em diante, a trama de Heli fica refém de inconstâncias. Personagens tentam refazer-se ainda sob o efeito da tragédia, mas essa fase de luto surge sem o peso suficiente. Tentando retomar a contemplação inicial, a narrativa se prende numa teia de fatos um tanto quanto irrelevantes, ao menos pela maneira como são apresentados. É como se o processo de anestesia do protagonista contaminasse o desenvolvimento que, assim, acontece sem maiores acréscimos. O sexo, ou melhor, a impossibilidade de sua ocorrência, está ali para, quem sabe, sinalizar a não união dos corpos como prenúncio de morte. Heli tem momentos que justificam plenamente a ovação crítica em Cannes, mas, no geral, é vítima do descompasso entre sugerir e esfregar determinadas “realidades” na cara do espectador.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Doses Homeopáticas #58


Em LA SAPIENZA os personagens falam diretamente à câmera, como se o interlocutor fôssemos nós, espectadores. Em crise, matrimonial e profissional, um arquiteto francês parte com a esposa para o interior da Itália, pois planeja efetivar o estudo sobre uma de suas referências. Há uma frieza quase total no relacionamento do casal, eles mal se olham, interagindo burocraticamente. Tudo muda depois de encontrarem dois irmãos, uma menina fragilizada por determinada doença (talvez de fundo somático) e um garoto cheio de energia que sonha em ser também arquiteto. O cineasta Eugène Green faz um filme lento, no qual as imagens permanecem na tela tempo suficiente para delas apreendermos o que na pressa deixamos escapar. Progressivamente os mais jovens mostram aos mais velhos a chama que ainda pode inflamar suas vidas. Fala-se muito a respeito de luz, nos contextos literal e simbólico. Formalmente rigoroso, caudaloso, é o tipo de filme que pode afugentar alguns, enfadar outros tantos, mas que oferece a recompensa devida a quem embarcar na construção cinematográfica de Green, que dá conta de combater a aridez, o embotamento decorrente das tristezas cotidianas, com a beleza intrínseca à criação, aos encontros e às trocas.


Protagonista de LÉOLO, Léo se crê filho de um italiano onanista que contaminou os tomates esmagados por sua mãe após um acidente. Isso lhe veio por meio de um sonho. Preferindo ser chamado de Léolo, esse garoto vive às voltas com a própria imaginação para afastar a loucura hereditária que acomete quase toda a família. Narrando em prosa e verso seu cotidiano de experiências, entre as inerentes a qualquer criança e as bastantes singulares, ele cria um mundo próprio, no qual se refugia da realidade. Fácil se afeiçoar a esse menino que funciona como um dos pilares da casa, o outro é a mãe, sempre tão afetuosa com ele, mesmo em momentos bizarros como a vigília para garantir a evacuação, algo obsessivo para o pai. Aliás, mesmo num ambiente degradado como aquele, o que não falta é afeto, sentimento tornado âncora que mantém todos unidos, até onde possível, contra a patologia que ameaça a sanidade. O tom de fábula ameniza ligeiramente a miséria daquela gente, mas não dá conta de segurar a torrente de tristeza que marca o encerramento desse filme em que a esperança quase vence as probabilidades, quase.



TUDO VAI FICAR BEM é um desastre quase completo. Não fosse a engenhosa cena do acidente, em que o protagonista transita do alívio ao desespero em questão de segundos, o filme seria descartável de todo. Há um privilégio às emoções fáceis, à autocomiseração e à lamúria, opção que não encontra nos atores, e muito menos na direção, algum registro que dê conta de minimizar os danos. A recorrência das várias transições do tipo “tanto anos depois”, expediente que visa marcar a passagem do tempo, expõe a fragilidade do roteiro. No que diz respeito às atuações, não há um destaque sequer, ao menos não positivo. James Franco, que virou caricatura de si mesmo, escancara suas limitações, sempre recorrendo ao franzir do cenho e às caretas para tentar transmitir a angústia de seu personagem. Já a de Charlotte Gainsbourg só chora, desenha e, de vez em quando, solta alguma pílula que denota fé. Fosse obra de um diretor estreante, a precariedade estaria, até certo ponto, ao menos justificada. Mas, não, estamos falando de Win Wenders, um grande cineasta que já nos deu obras-primas, como Paris, Texas, mas que, infelizmente, não vem fazendo jus à própria trajetória. 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Meninos de Kichute


Ainda que esteja pronto desde 2010, Meninos de Kichute só chega agora, em 2014, às salas de cinema, depois de exibido em alguns festivais. Particularidades da nossa cadeia produtiva que quando não “enforca” o filme nacional na gestação, o faz na distribuição. Na trama ambientada na década de setenta, o menino Beto (Lucas Alexandre) sonha em ser goleiro. Ele mora em Londrina, interior paranaense, com o pai extremamente religioso e contrário ao espírito competitivo do esporte, com a mãe que se submete aos desmandos do marido cuja autoridade parece legitimada tanto pelo machismo histórico quanto pela natureza patriarcal da religião, com a irmã mais velha e o irmão mais novo. A vida que lhe interessa está no campo, lá onde ele saiu da linha e foi para o gol, na posição entendida por muitos como a mais ingrata do futebol.

As rotinas escolares evidenciam um civismo imposto goela abaixo, em grande parte nas aulas de Moral e Cívica. Não esqueçamos, na época retratada o país ainda vivia no cabresto da ditadura militar. A rigidez de professores e funcionários é contraposta pela molecagem dos meninos que estão loucos para jogar futebol e transgredir as regras, inclusive vendo postais e revistas de mulher pelada, o que era considerado pouca vergonha. Há uma boa dose de memória afetiva na tela. Muito legal identificar nesse comportamento “ultrapassado” os costumes de uma realidade completamente analógica. Que menino de então nunca quis ter um Kichute, o famoso tênis da Alpargatas que imitava a chuteira? A tônica era ir para a rua, machucar o joelho nas partidas disputadas em campinhos de terra, fazer traquinagem, tudo menos ficar em casa. A vida estava lá fora.

Uma pena o diretor Luca Amberg desperdiçar esse potencial nostálgico, diluindo-o num simplismo que, aliás, permeia todo filme. O principal entrave ao sonho de Beto é o próprio pai. Interpretado por Werner Schünemann, esse homem evoca os dogmas de sua crença para castrar a aspiração do filho em nome de Deus. O que poderia ser um diálogo interessante, adquire contornos caricaturais, já que a figura paterna é unidimensional e está ali apenas como barreira, sem nuances mais claras. Até mesmo o destino desse pai dentro do filme é uma simplificação quase grosseira, pois choca sem sutilezas o discurso religioso com os atos posteriores que denotam hipocrisia, resvalando assim num evidente senso-comum. A narrativa infelizmente se apoia demais nessa estrutura frágil e monocórdica. 

Meninos de Kichute possui encenação meio desleixada e diálogos que batem pouco naturais na tela. O elenco, por sua vez, parece ora no piloto automático ora à deriva. Contudo, dificilmente o filme aborrecerá o espectador, desde que ele entenda limitações e abrace possibilidades. É um cinema intermediário, nem tão popularesco e muito menos voltado aos guetos da intelectualidade. Mas nem só de boas intenções vive o cinema, já que dele se espera um pouco de risco, que fuja vez ou outra da área confortável lá de onde as ressonâncias vêm enfraquecidas. Meninos de Kichute tem bons momentos, sobretudo as divertidas partidas de futebol, mas no geral fica a impressão de que a mistura de esporte, infância, anos de chumbo e família poderia render bem mais do que um filme simpático do qual, imagino, pouco lembraremos mais adiante. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Doses Homeopáticas #57

O CHICOTE E O CORPO, do diretor Mário Bava, começa com um “fantasma” cavalgando na beira da praia em direção à velha casa onde não é bem-vindo. Christopher Lee interpreta esse homem odiado por empregados e pela própria família, que chega ao castelo iluminado apenas pela luz das velas e da lua para trazer desgraça. O clima de terror é constante, com o chiaroscuro e a cenografia sendo em grande parte responsáveis por isso. Bava ambienta a contenda familiar num cenário macabro, marcado por sombras, no qual a luz pena para conseguir trazer algum tipo de alento ao que parece realmente fadado a virar tragédia. A cena em que Kurt chicoteia o antigo amor, expondo assim seu sadismo em conexão com o masoquismo dela, é apenas a perversão mais evidente das que surgem nas relações entre os personagens. Literalmente transformado mais tarde em fantasma, o filho regresso assombra a mulher que não consegue esquecê-lo, deixando um rastro de morte sempre que sai da catacumba para seduzi-la. O olhar compenetrado de Lee personifica o perigo, a danação que abate o clã, parte de uma sina escrita na história com sangue e lágrimas neste clássico italiano.


Baseado num conto de Edgar Allan Poe, A ORGIA DA MORTE é dirigido por Roger Corman, fã confesso do escritor norte-americano. A morte se veste de vermelho, ceifando vidas por meio da peste num vilarejo. Alheio a isso, o príncipe interpretado por Vincent Price incentiva nos limites de seus muros toda sorte de atrocidades promovidas pela aristocracia, protegido por um pacto com o diabo. Os três aldeões levados à corte servem de brinquedo aos nobres, sobretudo a esse monarca que pensa estar acima do bem e do mal. Enquanto os moradores da vila sucumbem diante da doença que avança, não encontrando clemência nos portões do castelo, os convidados do baile de máscaras se regozijam até mesmo quando um dos seus é incendiado. Em meio a uma trama de terror, Corman preserva a crítica social, não apenas por denunciar a opulência dos ricos opressores, mas também por mostra-los como vítimas do próprio ridículo. Abastados digladiam-se no salão quando o anfitrião lhes joga pedras preciosas, demonstrando ganância desmedida.  Os cenários suntuosos e as cores saturadas marcam o visual do filme. Terror sofisticado, um grande exemplar do rei dos filmes “B”.


Boris Karloff vive um profanador de sepulturas em O TÚMULO VAZIO, homem sem escrúpulos que chantageia a aterroriza o médico para o qual presta serviços. O doutor precisa de corpos para as aulas de anatomia. O taciturno cocheiro necessita de dinheiro. Um jovem aprendiz não quer fazer parte desse jogo sujo, mas cede diante da chance de curar a paralisia de uma menininha impossibilitada de correr e brincar como as outras crianças. O diretor Robert Wise investe na persona forte de Karloff, na interpretação de um ator que parece talhado para incitar medo. A ética é posta à prova durante a trama, afinal de contas, os médicos roubam cadáveres para aprofundar conhecimentos a respeito do corpo humano, algo que, em tese, servirá mais adiante para salvar vidas. Mesmo que haja certa nobreza por trás desse ato de tornar vazias as sepulturas, é algo contrário à lei vigente. Complexidades morais à parte, o filme possui figuras muito bem delimitadas, de quem podemos esperar este ou aquele comportamento. A força da narrativa se encontra no choque entre os anseios e as determinações das pessoas, bem como no visual macabro e na presença marcante de Boris Karloff, cujo personagem transpira ameaça. 

domingo, 13 de dezembro de 2015

A Pele de Vênus


A estrutura formal de A Pele de Vênus (2013), mais recente realização de Roman Polanski, dialoga evidentemente com a linguagem teatral, ainda que a expressão pejorativa “teatro filmado” não lhe seja justa - assim como, a meu ver, não se ajustava, mesmo que por motivos distintos, a Deus da Carnificina (2011), filme anterior do cineasta. O fato de quase toda ação se passar num palco italiano e seus arredores, não basta para que o cinema se submeta ao teatro. Aliás, o imperativo dos signos estritamente cinematográficos, tais como a montagem, por exemplo, em consonância com a encenação algo teatral, promove uma simbiose com ares de reverência mútua entre teatro, arte milenar, e cinema, arte secular. 

Thomas (Mathieu Amalric) é o adaptador do livro A Vênus das Peles, de Leopold von Sacher-Masoch, que tentará sua primeira incursão enquanto diretor. Desgastado por um dia de testes inúteis com atrizes incapazes de entender os personagens (sinal dos tempos, se repete ao longo do filme) ele está para partir quando interrompido pela atrasada Vanda (Emmanuelle Seigner), aspirante ao papel principal que chega reclamando de má sorte, desfilando vulgaridades e certo desdém pelo texto, ao passo que tenta convencer seu interlocutor a ficar e estender uma noite que parecia até então fadada ao encerramento num encontro protocolar com a noiva. Para Thomas a conversa inicial não é promissora, contudo ele acaba cedendo, mais à insistência destrambelhada de Vanda do que a qualquer esperança de encontrar nela sua musa.

A interpretação surpreendente da estranha e o crescente envolvimento de Thomas com o papel masculino faz emergir o que parece o eixo temático de A Pele de Vênus: relações de poder. Da autoridade do diretor logo relativizada à discussão sobre a histórica sujeição feminina, tudo gira em torno da ideia de que os relacionamentos, também os amorosos, são entremeados por complexas disputas por poder. Thomas é enredado pela misteriosa Vanda, de quem nada sabemos além das poucas informações fornecidas após conversas telefônicas de duvidosa existência. E esse jogo da mulher que utiliza o corpo e a voluptuosidade, mas, sobretudo, a inteligência para mostrar a fraqueza do bicho homem, acaba por embaralhar ficção e realidade.

Não estaria Polanski com A Pele de Vênus expondo um conceito de viés filosófico, segundo o qual, no final das contas, tudo é encenação? Conforme postulado na origem do teatro grego, se podemos ser interpretados por alguém, não seríamos nós mesmos essencialmente personagens? Thomas e Vanda são tipos que se atraem e se repulsam, quase na mesma medida. Polanski também promove uma aproximação seguida de distanciamento entre o tempo passado do romance (escrito em 1870) e a contemporaneidade do filme, apontando certas características e impulsos humanos imunes ao transcorrer dos relógios enquanto sinaliza determinantes demandas próprias da era atual. Ali, no palco teatral apropriado pelo cinema, Roman Polanski discute a complexidade das relações e do desejo, fazendo assim outro grande filme.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Doses Homeopáticas #56 - Especial Star Wars


UMA NOVA ESPERANÇA, primeiro filme da saga Star Wars, ainda que seja seu quarto capítulo, cronologicamente falando, estabelece todo um mundo novo (ou vários), valendo-se de personagens carismáticos e situações referentes a um passado que veríamos efetivamente na tela apenas nos anos 2000. Muito embora enquanto aventura seja desenvolvida a contento e possua uma mitologia bem construída, a realização de George Lucas peca pela fragilidade do roteiro que restringe as possibilidades de um maior envolvimento do espectador com o filme. Assim que conhece Luke Skywalker, Obi-Wan denuncia ser um Jedi exilado, e também conta boa parte do passado do garoto, inclusive que seu pai também era um guerreiro usuário da Força. Essa exposição acelerada de acontecimentos é uma constante durante todo o longa, algo que incomoda, claro, caso o espectador esteja em busca de algo a mais – sobretudo no que diz respeito à relação dos personagens, entre si e com a situação política que a galáxia vive – além de mocinhos contra vilões em batalhas que cortam a tela com lasers e outros artefatos bélicos futuristas. Mesmo Darth Vader não aparece em todo seu esplendor vilanesco nesta obra superestimada, que iniciou um verdadeiro culto persistente até hoje.


O IMPÉRIO CONTRA ATACA é o filme responsável por consolidar Darth Vader como um dos vilões mais marcantes do cinema. Ele começa caçando os gêmeos Skywalker no planeta gelado em que eles montaram uma base de resistência. Não é apenas supremacia política que está em jogo, mas a milenar luta entre os Sith e os Jedi, já que o Imperador Palpatine teme as habilidades de Luke, preferindo achar meios para aproximá-lo do lado negro da Força. Um dos grandes méritos do longa-metragem é balancear muito bem as várias dimensões dessa disputa, com isso não relegando os coadjuvantes à mera função de escora dos personagens principais, aliás, pelo contrário. Han Solo, por exemplo, ganha vários instantes de protagonismo. Muitos eventos essenciais à série acontecem neste filme. Luke encontra Yoda e passa a ter treinamento Jedi. Solo é congelado em carbonite. Luke enfrenta Vader numa luta de vida e morte, na qual o Sith revela ser o pai do futuro Jedi. O diretor Irvin Kershner dá ares mais trágicos à série, consolidando a mitologia Star Wars, superando de longe seu antecessor.


O RETORNO DE JEDI encerra com a mesma competência do episódio anterior a trilogia clássica de Star Wars. O roteiro dá conta de tornar ainda mais dramática, e definitiva, a luta entre Luke e Darth Vader. Enquanto isso, são cada vez mais valorizados os personagens que quase não podem ser chamados de secundários, dada sua importância. Os rebeldes precisam destruir a segunda Estrela da Morte, mas, claro, não será uma missão fácil, primeiro, porque o Imperador em pessoa está cuidando da mesma, e segundo, pois Vader intui que seu filho está diretamente envolvido na ação e, portanto, também se cerca de cuidados. Luke aparece já praticamente como um Jedi, exibindo certa sapiência que o faz, inclusive, não se deixar seduzir pelo lado negro da Força. Pai e filho brigam para ficar próximos, seja em qual lado for. No fim das contas, o bem prevalece, com direito a um breve momento em que Anakin, renegando a máscara e expondo sua humanidade decrépita, ressurge para sepultar de vez (será?) o grande vilão. O clima de final feliz toma conta da saga, com direito a festa no planeta dos Ewok, criaturas de grande valia para a vitória que possibilitou a restauração da República (até quando?).

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Era Uma Vez na Anatólia


Tudo parte da busca de um corpo. O crime está praticamente resolvido, pois os assassinos são confessos, só faltando mesmo a prova material. Três carros trafegam durante a madrugada pela paisagem de Anatólia, na Turquia, iluminando os campos com seus faróis à procura da vítima inerte. O principal dos culpados, o que parece ter efetivado a barbárie, tomba de sono enquanto a câmera do diretor Nuri Bilge Ceylan avança lenta em meio à conversa dos policiais sobre trivialidades. Tudo é trivial, até mesmo a morte. Era Uma Vez na Anatólia (2011) se desenrola na primeira de suas duas partes como uma espécie de conto de fadas, no qual a “moral da história” não reside no aparente foco principal, ou seja, na necessidade de encontrar um corpo morto, mas no que se constrói durante a interação entre os agentes dessa busca.

Um dos primeiros pontos a se destacar no filme de Ceylan é a alta capacidade expressiva de sua imagem, esta geralmente construída no limite entre luz e escuridão. Esse contraste dá um tom ligeiramente onírico à tensão que cresce de parada em parada. Os criminosos não lembram exatamente onde desovaram o corpo, portanto o mistério e a não-resolução ameaçam triunfar. Por sua vez, o policial encarregado do caso mostra insatisfação por não conseguir cumprir a missão que lhe foi confiada pelo promotor também presente. Como já dito, nada parece acontecer de fato dentro dessa sucessão de procuras em vão, a não ser o que surge na coadjuvância falsa das conversas paralelas. De toda maneira, ainda que conheçamos gradativamente melhor as figuras, até então apenas peças da ação principal e coletiva, não me parece que seja a elas que devamos atentar, mas às suas heranças.

Assim, exumar as terras não é simplesmente ir ao encontro de um dado material que resolveria o crime, mas sim desenterrar metaforicamente os elementos formadores de um povo, de uma nação ainda bastante alicerçada na tradição. O vir do dia não diminui essa sensação, apenas concede à palavra o que antes vinha com mais força da imagem. O médico e o promotor, em tese os mais letrados desde o início, debaterão veladamente questões que envolvem ceticismo e crença, a abertura ou não ao desconhecido, e a necessidade de conhecer ou não verdade. Isso se dá em colóquios de aparente banalidade, mas que não disfarçam seu caráter de conversa existencial. Para muitos, Era Uma Vez na Anatólia pode soar pesado, tanto pela duração (150 minutos) quanto pela negação veemente do espetáculo.

Se no começo da carreira, Ceylan mostrava clara influência do cinema de Robert Bresson (vide A Pequena Cidade, seu primeiro longa-metragem, de 1997), com o passar dos anos ele depurou um estilo próprio, bastante calcado na plasticidade e na interação do homem com uma natureza não raro hostil (exemplo: as nuvens carregadas que muitas vezes simbolizam interiores conturbados). Em Era uma Vez na Anatólia, ele vincula muito bem imagem e som para reverberar formalmente as demandas dos personagens na influência ainda bastante presente da ancestralidade turca. O ritmo caudaloso às vezes soa mesmo excessivo, como se a alguns dos chamados “tempos mortos” fossem dados mais minutos do que o devido. Não é um tipo de cinema de fácil empatia, ou necessariamente divertido, mas altamente compensador para quem estiver disposto a contrariar, vez ou outra, a própria fadiga.


Publicado originalmente no Papo de Cinema