quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Doses Homeopáticas #63


Um homem bem-sucedido profissionalmente, com um casamento estável, entra em parafuso ao hospedar-se em uma cidade, não por acaso a mesma onde mora um amor do passado, na qual vai dar palestra de negócios. O protagonista de ANOMALISA, esse grande filme de Charlie Kaufman, está cercado de gente com a mesma voz e feições semelhantes. Todo mundo é igual ao redor, a não ser Lisa, dona de uma voz singular, bem como de um rosto que a destaca dos demais, não necessariamente pela beleza, mas, sobretudo, por ser diferente. A animação é impressionante, os gestos de velocidade descompassada da técnica ajudam a exprimir a situação em que o protagonista se encontra, um estado de melancolia tamanho que o desespero começa a soar como sinal de salvação. Uma noite de sexo, o timbre único da mulher em seus braços, o fazem apaixonar-se instantaneamente por aquela até então estranha que sente vergonha do próprio corpo e não dissimula a baixa autoestima. Tão depressa quanto demonstrou apego, ele percebe que o problema não é o mundo, mas ele próprio, pois não consegue conectar-se a alguém, sem achá-lo parte aborrecida e redundante de algo que não o preenche. O personagem principal do filme de Kaufman parece fadado a sofrer, por ser irremediavelmente oco.


TAXI TEERÃ é outro dos filmes feitos de maneira um tanto clandestina por Jafar Panahi, em virtude da proibição imposta pelo governo iraniano, que o impede de exercer seu ofício. O diretor, então, instala câmeras num táxi e interage com os passageiros que embarcam aleatoriamente. De tão insólitas e representativas das restrições sociopolíticas enfrentadas pelo povo do Irã, as situações parecem até combinadas, quando não encenadas. Um acidentado pede para o diretor filmar seu testamento antes que ele morra; um vendedor de DVDs pirata proporciona reflexões a respeito da circulação de bens culturais no país; duas senhoras e seus peixes dourados representam as crenças do povo; além de outras ocasiões que se interligam por falar a respeito de ladrões e de possíveis punições. Mas o grande achado deste filme é a sobrinha do cineasta, sobretudo sua lista de ressalvas, de ordem temática, à realização de um curta estudantil. Panahi fica visivelmente incomodado com a tarefa escolar, algo compreensível já que aquilo alude diretamente à punição por ele sofrida. A dinâmica imagética lembra 10, do conterrâneo Abbas Kiarostami, mas o resultado é bastante distinto, salvo o fato de ambos refletirem em trânsito uma sociedade há muito estagnada.


AMAR, BEBER E CANTAR, o testamento de Alain Resnais, é um filme aparentemente leve, centrado em cirandas amorosas ocasionadas por uma série de situações que ocorrem em meio aos ensaios de uma peça teatral. Aliás, a arte dos palcos é reverenciada pelo diretor francês, que opta por cenários mais afeitos, em princípio, a ela que ao próprio cinema. Resnais experimentou até o fim, recusando-se a permanecer demasiado numa zona de conforto. É um dos grandes exemplos de carreira construída com doses generosas de risco. Neste filme, além de refutar veementemente o naturalismo cênico, sem com isso abdicar de um registro algo verista, sobretudo no que diz respeito às respostas dos personagens às complexidades dos relacionamentos, ele confere ares de protagonista a alguém que nunca aparece em cena. O amigo de todos, que está beirando a morte, desenganado pelos médicos que lhe dão não mais que seis meses de vida, é uma figura quase onipresente que, inclusive, promove boa parte dos desencontros com suas propostas insólitas às esposas dos amigos e até mesmo à mulher que havia o deixado. Resnais nos convida a imaginar, a participar ativamente do jogo de representação, no qual a ficção suspende nossa descrença, nos fazendo dar mais valor ao fabulário que necessariamente à pretensa verdade inerente à visão. 

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